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Por que nos importamos tanto com o sofrimento alheio? - Os neurônios-espelho e a origem orgânica da empatia

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Por Hermes C. Fernandes 

“Nós somos responsáveis pelo outro, estando atento a isto ou não, desejando ou não, torcendo positivamente ou indo contra, pela simples razão de que, em nosso mundo globalizado, tudo o que fazemos (ou deixamos de fazer) tem impacto na vida de todo mundo e tudo o que as pessoas fazem (ou se privam de fazer) acaba afetando nossas vidas.” –Zygmunt Bauman 


Descobertos acidentalmente, os neurônios-espelho têm sido considerados um dos mais importantes achados das neurociências dos últimos tempos. Há quem ouse dizer que essas células farão pela psicologia o que o DNA fez pela biologia. Outros comparam a importância desses estudos aos das células-tronco. O cérebro tem cerca de 100 bilhões de neurônios - dos quais apenas 5% são espelhos. Apesar de proporcionalmente não serem tantos, respondem por muito do que somos. 

Era 1994, os neurocientistas Giacomo Rizzolatti, Leonardo Fogassi e Vittorio Gallese da Universidade de Parma, na Itália, conduziam um experimento com um macaco, em que instalaram fios numa área do cérebro responsável pelos movimentos. Sempre que o macaco pegava ou movia um objeto, determinadas células cerebrais disparavam. O monitor em que os eletrodos estavam ligados registrava a área de localização desses neurônios e emitia um sinal sonoro. Quando um aluno de pós-graduação entrou no laboratório com uma casquinha de sorvete na mão, o macaco olhou fixamente para ele e, em seguida, algo inusitado aconteceu: quando o estudante levou a casquinha aos lábios, o monitor apitou novamente – mesmo o macaco não tendo feito qualquer movimento, mas apenas observado o aluno. A cena voltou a se repetir com outros alimentos, como amendoins e bananas. Portanto, a resposta de seus neurônios-espelhos só podia vir da ação de outra pessoa. Os cientistas perceberam que as células cerebrais disparavam quando o macaco via ou ouvia alguém fazer algo ou, ainda, quando ele mesmo realizava uma tarefa. Assim chegaram às primeiras conclusões sobre a capacidade dos neurônios-espelhos. Mais tarde, exames de neuroimagem mostraram que os seres humanos têm neurônios-espelho muito mais sofisticados e flexíveis que os dos macacos. 

As pesquisas apontaram que os neurônios-espelho teriam, entre outras coisas, a propriedade de simular a perspectiva do outro. Portanto, eles seriam os responsáveis pela empatia, função que nos habilita a compreender as circunstâncias nas quais o outro se encontra, gerando sentimentos recíprocos tais como a solidariedade e o desejo de compartilhar experiências. A empatia é o aquele sentimento que nos faz enxergar a nós mesmos no outro. Não poderia haver melhor nomenclatura para esses neurônios do que neurônios-espelho.

O que nos levar a sorrir quando vemos alguém sorrir? E a bocejar quando alguém boceja próximo de nós? Ou a nos emocionar ao flagrar alguém chorando? Empatia. Nosso cérebro funcionaria como um simulador de ação. Mesmo que não conscientemente (implícita, no jargão das ciências cognitivas), imitamos mentalmente qualquer ação que observamos. Quando duas pessoas estão sentadas numa mesa de restaurante, uma tende a copiar a postura da outra. O mais interessante é que isso não acontece somente em termos de linguagem corporal, mas emocional também. Temos a tendência de sentir as mesmas emoções que uma pessoa próxima de nós. Isso se deve à atuação dos neurônios-espelho distribuídos pelas partes essenciais do cérebro, como o córtex pré-motor e os centros de linguagem, empatia e dor [1]. Nosso cérebro reproduz o padrão neural da emoção sugerida pelas expressões faciais e até os movimentos corporais.[2]

Segundo o pesquisador húngaro Gergely Csibra, do Departamento de Psicologia do Birkbeck College, no Reino Unido,[3] o papel dos neurônios-espelho talvez não seja exatamente o de espelhar ou simular a ação, mas o de antecipar as possíveis respostas a essa ação. O cérebro seria, portanto, um grande gerador de hipóteses que antecipa as consequências da ação, facilitando a tomada de decisão. Esta capacidade nos possibilitaria imaginar o que se passa na mente do outro, colocando-nos em seu lugar e compreendendo suas ações. De modo que, se vemos alguém chorar por qualquer que seja o motivo, os neurônios-espelho nos fazem lembrar de situações em que nós mesmos choramos, e assim, simulamos a sua própria aflição. É justamente esta capacidade de simular a perspectiva do outro que se constitui na base de nossa compreensão de suas emoções.

Os experimentos com neurônios-espelho parecem contrariar a ideia de que as decisões morais seriam de natureza cognitiva, envolvendo um pensamento moral. Os comportamentos morais teriam um forte traço afetivo, posto serem frutos da capacidade que o indivíduo tem de sentir as emoções do outro. Não aprendemos os valores morais apenas por compreendê-los racionalmente, mas por sermos sentimentalmente educados.

Os neurônios-espelho nos permitiriam captar a mente dos outros não por meio do raciocínio conceitual, mas pela simulação direta. Sentindo e não apenas pensando.

Sem dúvida, é graças a tal capacidade que podemos estabelecer relações sociais. Predizer as emoções do outro é essencial para um comportamento socialmente aceitável. Isso evita que cometamos atos que sejam dolorosos ou prejudiciais ao nosso semelhante.

Convém salientar, entretanto, que as bases neuronais da empatia não diminui em nada o valor do sentimento, mas tão-somente nos ajuda a entender um pouco melhor a nossa condição humana. Assim como aprender a ler pautas musicais não interfere em nossa apreciação de uma bela composição. O Criador nos equipou com todos os itens de fábrica necessários para que vivêssemos plenamente nossa humanidade. Pena que ultimamente a impressão que se tem é de que alguns estejam com o espelho embaçado pelo vapor de seu próprio discurso.

____________________________

[1] Rizzolatti, G.; Craighero, L.; The Mirror – Neuron system, Parma: 2004 
[2] Ekman, P. & Davidson, R. J. Voluntary Smiling Changes Regional Brain Activity, Psychological Science, 1993 
[3] Csibra G. Action mirroring and action understanding: an alternative account. In: Haggard P, Rosetti Y, Kawato M (eds.) Sensorimotor foundations of higher cognition. Attention and performance XII. Oxford University Press, Oxford: 2007.

Arrependendo-se da velha opinião formada sobre tudo

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Por Hermes C. Fernandes

Há como compartilhar a boa nova sem requerer que as pessoas se arrependam de seus pecados? Não sou linguista, mas gosto de observar como as palavras evoluem ao longo do tempo. Por exemplo: quem prestaria condolências a uma viúva dizendo que a morte de seu marido foi algo formidável? A menos que queira criar uma confusão em pleno funeral. Porém, o sentido original desta palavra é justamente este. Tempos atrás, dizer que algo era formidável significava dizer que era terrível.[1] O que um adolescente de hoje em dia quer dizer quando se refere a algo como “irado”? Provavelmente não está pensando em algo odioso. O que hoje é apenas uma gíria, amanhã estará nos dicionários. As palavras simplesmente mudam com o tempo.

“Arrependei-vos!”, bradava Jesus pelas ruas da Galileia. Para a maioria dos cristãos de nossos dias, o arrependimento proclamado por Cristo nada mais seria do que um remorso pelos erros cometidos. Dentro de uma cultura católica como a nossa, arrependimento tem a ver com penitência. Portanto, arrepender-se implica chorar amargamente, penitenciar-se. Se for protestante, o penitente deve jejuar, quebrantar-se, prostrar-se com o rosto em terra. Se for católico, deverá confessar-se com um sacerdote, rezar alguns “pai-nossos” e “ave-Marias” para ser absolvido, etc. Sem querer desdenhar de tradição alguma, seria isso que Jesus tinha em mente ao conclamar os homens ao arrependimento?

O vocábulo grego traduzido por “arrependimento” em nossas Bíblias é metanoia. Devo adiantar que não tem a ver propriamente com sentir remorso ou pesar, ainda que possa, eventualmente, incluir tais elementos. Metanoiaé a junção de duas palavras: meta, que teria o mesmo significado de nosso prefixo trans, e significa “ir além de”. E noia que se origina de nous, que é “mente” em grego. Portanto, numa tradução livre, metanoia significa “ir além de uma mentalidade”, ou simplesmente, “expandir a consciência”. Se fosse hoje, talvez Jesus pregasse em nossas ruas: "Abram a cabeça!" ou até "Parem de pensar dentro da caixa!"

Não é o uso da palavra “arrependimento” que legitima um discurso evangelístico. Qualquer discurso que conclame os homens a expandir sua consciência, a libertar-se de um padrão de pensamento, e que apresente o reino de Deus como a proposta divina à mentalidade vigente, é, sim, um discurso evangelístico. Eu disse, evangelístico, não proselitista.

De fato, o anúncio do evangelho do reino demanda conversão. Está aí outra palavra mal compreendida nos círculos religiosos. Converter-se não é aderir a uma nova religião. Trata-se, antes, de dar uma guinada de 180º, mudar de direção. Jesus disse que se não nos convertermos e não nos fizermos como meninos, de modo algum entraremos no reino dos céus.[2] Talvez esta seja a melhor definição de conversão: tornar-se como um menino. Remover todas as camadas que se formaram em volta de nosso ser e reencontrar nossa essência. Redescobrir aquilo para o qual fomos criados.

Arrependimento e conversão caminham juntos. Arrepender-se seria algo como “cair em si”, perceber que está caminhando na direção contrária. Converter-se é dar meia volta. Se antes vivíamos para nós mesmos, agora nos voltamos para fora. Não há como converter-se a Deus, sem que se converta ao próximo.

A essência do pecado é viver para si. Etimologicamente, pecado significa “errar o alvo”. Antes de nos convertermos, nossas atitudes visavam nosso próprio benefício. Mirávamos em nós mesmos. Era como se o mundo todo nos orbitasse. Pensávamos ser o centro gravitacional do universo. A conversão promove um deslocamento de eixo. Finalmente, tornamo-nos livres para amar a todos à nossa volta.

Emerge daí uma nova percepção da realidade. Como disse Paulo, tudo se faz novo. Tornamo-nos novas criaturas.[3] Nossa consciência se expande para além de nós mesmos. Percebemo-nos parte de uma realidade onde tudo está conectado. Obviamente que isso altera nossas opiniões e conduta. Não dá para continuar vivendo como antes. A pergunta “em que isso me beneficia ou prejudica” é substituída por “em que isso poderá trazer beneficiar o meu próximo”. Ninguém precisará perder para ganharmos. Nossa felicidade não deverá custar a desgraça de outros.

Imagine um mundo em que todos se convertessem assim? Pois a este mundo que Jesus chama de “reino de Deus”. Não se trata de um lugar para onde vamos depois da morte, mas de um lugar onde os homens vivam como irmãos.

Quando as pessoas deixarem de viver para si mesmas, muito daquilo que consideramos pecado deixará de ser praticado. Mentir, roubar, matar, adulterar, são comportamentos provenientes de uma vida autocentrada.

Um discurso que ataque os frutos sem mostrar a raiz do problema está fadado ao fracasso. Daí a ineficiência do discurso moralista.

Muitos cristãos sinceros e bem intencionados acreditam piamente que o que vai levar os homens ao arrependimento é anunciar o castigo que os aguardam depois da morte. Pensam que a ameaça do inferno é suficiente para provocar uma mudança de conduta nas pessoas. Creio que Paulo não concordaria muito com eles. Segundo o apóstolo, o que levaria os homens ao arrependimento é a benignidade de Deus.[4]

É esta mesma benignidade que, segundo Jesus, permitiria que “publicanos e meretrizes” entrassem no reino de Deus antes mesmo dos religiosos rigorosos.[5]

O que temos visto hoje é um crescente número de adesões à religião evangélica. Porém, o que as pessoas parecem buscar são vantagens. De um lado, pregadores anunciam curas milagrosas e prosperidade instantânea, do outro lado, pregadores fundamentalistas ameaçam as pessoas de serem lançadas no inferno caso se negue a se converter. Parece que ambos os discursos funcionam. Todavia, assistimos a emergência de uma geração de cristãos ensimesmada e alienada. Se houvesse, de fato, conversões legítimas, o número de cristãos neste país já teria provocado uma revolução sem precedentes. Não haveria mais miséria nos grandes centros urbanos, uma vez que toda esta massa de convertidos estaria partilhando seu pão.

A religião evangélica se tornou numa hidra famigerada, que só pensa em estender seus tentáculos e transformar o país de cima para baixo, impondo uma agenda moralista ao resto da sociedade.

Talvez tenhamos algo a aprender com a muçulmana Rabia al Adawiya al Qadsiyya que teria vivido no ano 800 de nossa Era. Tente não emocionar-se com o que ela diz:

 “Se eu te adorar por medo do inferno, queima-me no inferno; se eu te adorar pelo paraíso, exclua-me do paraíso; mas se eu te adorar pelo que tu és, não esconda de mim a tua face!” 

Nascida em uma família muito pobre, que não tinha condições de comprar óleo para acender uma lamparina dentro de casa, Rabia acreditava que Deus deveria ser adorado por amor, não por medo ou interesse.

Teresa de Ávila, a freira católica canonizada pelo Vaticano, também esboçava esta percepção. Confira o soneto composto por ela sob o título “A Cristo Crucificado”:

Não me move, meu Deus, para querer-te
o céu que me hás um dia prometido,
e nem me move o inferno tão temido
para deixar por isso de ofender-te.

Tu me moves, Senhor, move-me o ver-te
cravado numa cruz e escarnecido;
move-me ver teu corpo tão ferido;
movem-me o insulto e a vida que perdeste.

Move-me teu amor, de tal maneira,
enfim, que sem céu ainda te amara
e a não haver inferno te temera.

Nada me tens que dar porque te queira.
E se o que ouso esperar não esperara,
o mesmo que te quero te quisera.

Deus deve ser amado pelo que é. E Ele escolheu ser amado no semelhante. Ele não se impressiona com mãos estendidas ao céu, mas pede que estendamos nossas mãos ao próximo. Acolher o próximo é liturgia. Partilhar nosso pão é eucaristia.

O que nos inspira a uma vida voltada para fora de nós mesmos é o sacrifício de Cristo. Podemos até nos sentir motivados por palavras como as de Rabia ou Teresa de Ávila, mas teremos que buscar n’Ele a inspiração para viver.

Por isso, o centro de nossa fé é a cruz. Ali, o Deus revelado em Jesus Se entrega por amor a uma humanidade que se encontrava a deriva no oceano da existência. Como imaginar aquela cena e não se sentir constrangido? Como disse Paulo, “o amor de Cristo nos constrange, considerando nós isso, se um morreu por todos, logo todos morreram. E ele morreu por todos, para que os que vivem não vivam mais para si.”[6]João, conhecido como apóstolo do amor, arremata: “Conhecemos o amor nisto: que ele deu a vida por nós, e nós devemos dar a vida pelos irmãos.”[7]

Dizer que Ele morreu por nós é apenas parte da verdade. Ele abriu mão de Sua vida para que nós façamos o mesmo. Ao olhar para aquela cruz, devemos ver-nos nela. Ela não é somente a Sua cruz, mas a nossa. Ele morreu por todos, logo todos morreram. Somos conclamados a ser co-participantes do gesto que alterou para sempre o rumo da história.

Uma vez que nos condiremos crucificados juntamente com Ele, o Espírito de Cristo passa a viver através de nós. Esta foi a promessa que Ele nos fez. O mesmo Espírito que ressuscitou a Jesus de entre os mortos, agora nos habilita a viver uma nova vida, não mais centrada em nós mesmos, mas voltada para os demais.

Desencadeia-se, assim, um processo que transformação. Tomando emprestada a expressão cunhada por Raul Seixas, tornamo-nos numa metamorfose ambulante. Aos poucos, o Espírito Santo vai nos remodelando, tornando-nos cada vez mais parecidos com Jesus.[8] Isso não nos faz candidatos a anjos, mas resgata completamente a nossa humanidade. Deus não Se fez homem para nos tornar deuses ou anjos, mas para nos tornar plenamente humanos.

Jamais foi intenção de Jesus povoar este mundo de cristãos, nem impor nossa religião aos demais. O propósito do evangelho é o de nos fazer seres humanos melhores, cumprindo, assim, a razão de nossa existência.





[1]“Formidável” do Latim FORMIDABILIS, “o que causa medo, terrível”, de FORMIDARE, “temer”, de FORMIDO, “temor, terror, medo”.
[2] Mateus 18:3
[3] 2 Coríntios 5:17
[4] Romanos 2:4
[5]Mateus 21:31-32
[6] 2 Coríntios 5:14,15
[7] 1 João 3:16
[8] 2 Coríntios 3:18

Documentário sobre "Intolerância Religiosa" na Globo News neste sábado às 21h. com a participação de Hermes C. Fernandes

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No próximo sábado, dia 19 de setembro às 21:05h, vai ao ar o documentário "Intolerância Religiosa" gravado na Reina há três meses. Assistam e divulguem para os seus amigos. 


 Por Hermes C. Fernandes 

Na manhã do dia doze de junho de dois mil e quinze, numa ensolarada sexta-feira, recebemos em nossa igreja uma equipe jornalística da Rede Globo de Televisão, empenhada na produção de um documentário sobre intolerância religiosa. Ao nos contatar, Claudio Renato Passavante, diretor de jornalismo da Globo News, contou-nos que o que teria chamado a atenção para aquela pequena igreja do subúrbio carioca era sua proposta de coexistência harmoniosa com pessoas de qualquer religião ou segmento social, que a seu ver, destoava de algumas igrejas midiáticas. 

Justamente num momento em que o país parecia viver o limiar de uma guerra religiosa, protagonizada por grupos religiosos extremistas, considerei que esta poderia ser uma oportunidade de ouro para mostrar o outro lado. Nem todos pautam seu discurso no ódio, no preconceito, num moralismo radical e desumano. 

Há que se celebrar o fato de vivermos numa das maiores democracias do mundo. Pessoas de todas as etnias, credos e culturas se mesclam provendo um caldo sem precedentes na história da civilização, com todos os nutrientes que possibilitem a emergência de uma sociedade pacífica pautada na equidade, na diversidade e no respeito mútuo. Todavia, tudo isso repousa sobre uma sensível calibragem. A qualquer momento o equilíbrio é rompido, e como uma bicicleta em movimento, pode pender para um lado ou para o outro. Temos evidências históricas indiscutíveis de que todo extremismo é perigoso. Portanto, a manutenção deste equilíbrio deve ser a ordem do dia. Um descuido, e lá se vão anos e anos de convivência amistosa. 

Sempre ouvi que em se tratando de TV, uma imagem fala mais do que mil palavras. Razão pela qual me senti impulsionado a fazer algo que talvez pudesse despertar a consciência de muitos quanto à necessidade de se resgatar a mensagem central do evangelho: o amor. 

O primeiro desafio seria lotar a igreja num dia e horário tão impróprios. Para a surpresa de muitos, nosso povo atendeu ao convite em cima da hora, lotando as dependências da Reina [1] do Engenho Novo, bairro do subúrbio carioca. Convidei a algumas pessoas para representar segmentos sociais que têm sido vítimas de intolerância, não apenas religiosa, mas também social, étnica, cultural, etc. Após algumas canções de louvor e a ministração de uma breve palavra, pedi que essas pessoas subissem à plataforma. Entre elas, um rapaz travestido de mulher representando a comunidade LGTB, uma mulher vestida a caráter representando os cultos afros, uma portadora de necessidades especiais, um negro, uma imigrante boliviana vítima de trabalho escravo no país, um sociólogo que por muitos anos havia professado o ateísmo e uma bióloga representando a ciência. Pus-me de joelhos e com uma bacia d’água, comecei a lavar e beijar seus pés, rogando que nos perdoassem por toda a discriminação que lhes havíamos impingido. O público presente não conteve as lágrimas. Era como se o abismo profundo que nos separava estivesse sendo finalmente transposto. Para os que creem, a presença de Deus era quase tangível. 

A cerimônia de lava-pés foi sucedida por uma entrevista de quase uma hora acerca de temas envolvendo a relação da igreja evangélica com os mais diferentes segmentos sociais. Mesmo as mais delicadas questões expostas pelo jornalista foram prontamente respondidas sem titubeios ante a câmera e o olhar atento da multidão. 


Ao deixar a igreja naquela manhã, vi-me arrebatado por uma sensação de missão cumprida. O recado estava dado. Sentia-me como aquele beija-flor que tentava apagar o incêndio da floresta com a água que trazia no bico. Ainda que não lograsse êxito, ao menos, estaria fazendo a minha parte, mesmo sob o rugido de leões que protestavam. 

Obviamente, eu teria que lidar com as críticas, principalmente com o “fogo amigo”. Confesso que me julgava preparado para isso. Mas jamais esperei reações tão ácidas, principalmente depois de postar as fotos do lava-pés numa rede social. Fui julgado, execrado, chamado de herege, liberal, dentre outros adjetivos. Interessante que ninguém pareceu ofendido ao ver-me ajoelhado aos pés de uma portadora de necessidades especiais ou de uma imigrante. Mas, ver-me de joelhos aos pés de uma “mãe-de-santo” e de uma “transexual” era inadmissível. 



Se alguém é capaz de escandalizar-se com tão pouco, imagine se visse Jesus elogiando a fé de um centurião devoto dos ídolos romanos, e ainda por cima, confessando jamais ter encontrado tamanha fé nem mesmo entre os fervorosos judeus. E se o flagrasse num papo descontraído com uma samaritana em plena luz do dia? E se presenciasse Sua brilhante defesa daquela mulher pega em adultério, impedindo que fosse sumariamente executada no pátio do templo? 

É tempo de construir pontes e não de escavar abismos. Não quero ver meu país dividido numa guerra estúpida, que de santa não tem nada. Afinal, Deus nos confiou a palavra da reconciliação, não da condenação.[2] O mesmo Espírito que agiu através de homens como Martin Luther King nos Estados Unidos e Nelson Mandela na África do Sul, impedindo que seus países permanecessem divididos pela segregação, está persuadindo homens e mulheres a emprestar seus lábios a destilar graça e amor em vez de condenação e rancor. 

A prática do lava-pés era comum na época de Jesus. Lavar os pés de um visitante fazia parte da etiqueta social e não possuía qualquer conotação religiosa. Se em Seu primeiro milagre, Ele toma os utensílios usados em ritual de purificação dos judeus e lhes dá uma função profana (servir vinho!)[3], desta feita, com Sua mania de subverter as coisas, Ele adota um costume pertencente a etiqueta social e lhe atribui um sentido sagrado.[4] Assim, Ele nivela todas as coisas, resgatando a sua sacralidade original. 

O texto bíblico diz que antes da páscoa, “sabendo Jesus que já era chegada a sua hora de passar deste mundo para o Pai, como havia amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim.”[5] Portanto, o que o motivou a se desnudar ante o olhar escandalizado dos discípulos e a lavar os seus pés como um serviçal qualquer não foi outra coisa além do mais puro amor. Um amor totalmente incondicional, isto é, que independia do que fizessem ou deixassem de fazer. Lembremo-nos de que entre os discípulos estava Judas, que, na sua vez, teve a ousadia de levantar o calcanhar como se dissesse: Se é para lavar, trate de lavar direitinho. Mesmo assim, Jesus não deixou de lavar os seus pés. Ele estava entre os que Jesus amou e amou até o fim. Lamentavelmente, há muitos que escolheram julgar, discriminar, odiar, mas ainda há tantos outros que, constrangidos pelo exemplo de Cristo, escolheram amar e amar até o fim. 

Para assistir ao trailer do programa, clique aqui.

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[1] REINA, sigla para Rede Internacional de Amigos, nome da denominação que presido. 
[2] 2 Coríntios 5:19 
[3] João 2:6 – A água transformada em vinho foi colocada em seis talhas de pedra que os judeus usavam em rituais religiosos de purificação. 
[4] Algumas igrejas adotam o lava-pés como uma ordenança semelhante à Ceia do Senhor. 
[5] João 13:1

Assista aqui ao trailer do documentário sobre Intolerância Religiosa na Globo News com a participação de Hermes C. Fernandes

Um Deus de pés descalços e calejados

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Por Hermes C. Fernandes

Eu tinha entre nove e dez anos quando me atrevi a pedir que meu pai me desse uma mesada. Em vez disso, ele me presenteou com uma caixa de engraxate. A igreja que ele pastoreava estava em obras. Ninguém queria deixar o culto com os pés empoeirados. Aquela foi minha primeira fonte de renda. Antes que julguem meu pai pela iniciativa de me fazer trabalhar tão cedo, devo dizer que nunca o questionei por aquilo. Pelo contrário. Sem querer fazer apologia ao trabalho infantil, orgulho-me por ter começado cedo. Os tempos eram outros. 

Jamais vou me esquecer do orgulho que senti ao comprar meu primeiro par de docksiders com o dinheirinho ganho com o meu suor. Sempre quis ter docksiders, mas meu pai, que havia sido sapateiro na juventude, se recusava a comprá-los por achar que não eram sapatos de verdade. Mas, agora, com o meu dinheiro, podia comprar o que quisesse. 

Se eu me importava ou me sentia humilhado por ser o filho do pastor engraxando sapatos dos fiéis? Que nada! Gostava de deixar os sapatos bem escovados, quase espelhados. Descobri o prazer de trabalhar não apenas pelo dinheiro, mas pela satisfação advinda do serviço em si e pela satisfação constatada no sorriso dos clientes. Devo confessar que cada elogio recebido deixava meu ego mais lustrado que os sapatos que engraxava. 

E o que é isso em comparado com o que o fez o Filho de Deus? Eu apenas engraxava sapatos, contentando-me em ver meu reflexo em seu brilho. Ele se pôs a lavar os pés de Seus discípulos. Aquele sim era um trabalho escravo. Eu usava escova e graxa. Ele usou uma bacia de água e uma toalha. Que reflexo se podia ver em pés limpos? 

Porém, o Jesus que tem sido pregado nos púlpitos atuais está mais para engraxate. Que diferença
poderia haver entre uma atividade e outra? Ambos não são serviços que envolvem os pés? Eis a diferença básica entre qualquer ideologia ou religiosidade meramente humanas e a espiritualidade proposta por Jesus: A primeira só faz lustrar nossos sapatos, valorizando aquilo que é aparente, externalidades. A segunda, valoriza o que fica escondido, mas que é a base de sustentação sobre a qual descansa todo o resto. 

Qual a primeira coisa que fazemos quando lavamos nossos pés? Alguém já lavou os pés estando calçado? Por isso, Deus, ao comissionar Moisés a tirar Seu povo do Egito, ordenou que antes tirasse as sandálias de seus pés. Quem diria que este mesmo Deus, um dia lavaria os pés dos homens? 


Onde já se viu... um Deus que não se importa com técnicas, estratégias, marketing, background, Know-How, convenções sociais... Ele lida é com subjetividades. Um Deus real que mergulha em nossas realidades. 

O Deus revelado em Jesus não é nem engraxate, nem sapateiro. Ele não lustra, nem conserta sapatos. Ele cuida dos pés. 

Ele não sacraliza perímetros, geografias, objetos, instituições, tradições; Ele sacraliza consciências, que por sua vez tornam sagrado tudo o que percebe à sua volta. De que adianta pés imundos escondidos em sapatos lustrados? 

Meu pai costumava dizer, como bom sapateiro que era, que é possível reconhecer o nível social de alguém pelos calçados. Alguém duvida? Instintivamente, a primeira coisa para a qual olhamos ao encontrar alguém é para seus pés. Seus calçados dirão mais dela do que seus trejeitos e impostação de voz. Os romanos antigos concordariam com isso. Nos tempos áureos do império, o calçado indicava a classe social dos cidadãos. Os cônsules usavam sapato branco, os senadores sapatos marrons presos por quatro fitas pretas de couro atadas a dois nós, e o calçado tradicional das legiões era a bota de cano curto que mantinha os dedos descobertos. Já entre os egípcios antigos, mais despojados, era comum andar descalço e carregar as sandálias, usando-as apenas quando necessário. 

Alguns calçados são imponentes, com seus saltos agulhas ou exibindo brilho intenso com os de cromo alemão. Outros são despojados como as havainas ou os chinelos franciscanos. Porém, sem eles, somos todos iguais, vulneráveis, calejados, cansados. 

Então, que tal descermos do salto um pouco e caminharmos desprovidos da habitual arrogância que ostentamos? Que tal sermos mais complacentes com o nosso próximo em vez de julgá-lo pelo brilho ou desgaste de seus calçados? Somente pés calçados são capazes de chutar. Ninguém em sã consciência chutaria qualquer coisa, nem mesmo uma bola, com os pés desprotegidos, não é mesmo? Quem anda descalço corre o risco de se machucar, mas não sai por aí machucando os outros. 

Só exibe pés descalços quem não tem motivos de esconder seus calos ou seus esporões. Quem assume plenamente sua condição humana. Pelo menos, não precisa dizer que está com uma pedra no sapato. A gente até pisa em pedrinhas, mas não lhes oferece abrigos em nossos calçados. Eis uma das vantagens de se andar descalço no chão da existência. Certamente haverá calos. Todavia, serão melhor distribuídos pelos pés, em vez de se concentrarem somente onde o sapato aperta. 

Qualquer um que ouse se aproximar do Criador, ouvirá d’Ele a mesma recomendação: Tire as sandálias de teus pés. O lugar sagrado de que Ele fala não é o perímetro ao redor da sarça, mas o perímetro relacional. Um Deus descalço almeja relacionar-se com seres igualmente descalços. E isso não se limita ao nosso relacionamento com Deus. Toda relação é um campo sagrado. Seja entre pais e filhos, maridos e mulheres, irmãos, amigos, e até entre desconhecidos e desafetos. 

O sapato até protege, mas aperta. Traz conforto e desconforto ao mesmo tempo. Ilude-nos com a sensação de estarmos seguros, mas nos priva da sensação de alívio que só sentimos quando os removemos. 

E cá entre nós... O que é um buraco na sola do sapato para pés descalços? Nada. Em compensação, que outra sensação se iguala a de pisar sobre a relva com os pés desnudos? 

Quanto da vida se aproveitaria se nos arriscássemos a aposentar nossos sapatos? Imagine se nos livrássemos das sandálias do preconceito, da prepotência, da ganância e de tudo mais que nos isola do que a vida tem de melhor. 

Talvez assim, o mundo se abrisse à mensagem que nos propusemos propagar. Não é à toa que Paulo, o apóstolo faz coro com o profeta Isaías ao exclamar: “Quão formosos os pés dos que anunciam as boas novas” (Romanos 10:15)! Não são formosos por serem perfeitos, mas por estarem nus, sem a pretensão de impor uma verdade. São formosos porque refletem os pés de cada ser humano, independente de sua condição social, credo ou etnia. Formosos porque pertencem a quem segue pelo mundo afora anunciando que Deus não está de mal com os homens.

Segue abaixo uma das mais lindas canções de Sandy.


Assista aqui a nossa participação no documentário sobre intolerância religiosa na GloboNews

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Amigos, quero registrar aqui a minha gratidão à todos que assistiram ao documentário sobre intolerância religiosa exibido pela Globo News. Também agradeço ao jornalista Claudio Renato Passavante pelo convite para participar de um projeto tão pertinente, bem como à jornalista Renata Baldi, responsável pela direção. Alguns dos meus amigos questionaram a razão porque a cerimônia do lava-pés não foi incluída na edição. Não deve ter sido nada fácil editar horas e horas de entrevistas com representantes de vários segmentos religiosos. Obviamente, outras coisas consideradas importantes pelos demais entrevistados tiveram que ser cortadas. Mesmo assim, sinto-me imensamente satisfeito por ter tido a oportunidade de expressar um pouco de nossa compreensão acerca do amor de Deus e do respeito ao próximo.

Apesar de modesta, nossa contribuição fez um contraponto ao discurso odioso travestido de piedade que tem sido bradado em muitos púlpitos atuais. Como tenho dito com frequência, somos apenas um beija-flor tentando apagar o incêndio da floresta com a água que traz no bico. Duas coisas peço a Deus: que surja uma revoada de beija-flores igualmente dispostos a destoar de tudo que está aí. E que nos sejam dadas outras oportunidades para expressar o que entendemos ser a proposta original de Jesus Cristo: o amor que aproxima os distantes e revela semelhanças entre os diferentes. Obrigado a todos pelo carinho.

O argumento dos intolerantes: Jesus veio trazer espada!

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Por Hermes C. Fernandes

Um dos argumentos mais usados por cristãos que defendem uma postura de intolerância para com os adeptos de diferentes credos se baseia numa das falas mais incompreendidas de Jesus. Confira o que Ele diz:

“Não penseis que vim trazer paz à terra. Não vim trazer paz, mas espada. Pois eu vim trazer divisão entre o homem e seu pai, entre a filha e sua mãe, entre a nora e sua sogra. Assim, os inimigos do homem serão os seus próprios familiares.”Mateus 10:34-36

O que Jesus quis dizer com isso, afinal? Era de se esperar que uma passagem como esta causasse confusão na mente de muitos cristãos sinceros. Principalmente daqueles que a pinçam de seu contexto, atribuindo-lhe um sentido alheio ao que Jesus intentou dar.

Ora, se Ele disse que bem-aventurados são os pacificadores, por que agora se contradiria afirmando que Ele mesmo teria vindo trazer discórdia em vez de paz? E o pior é que isso teria como cenário a família. Quão destoante parece esta afirmação de tudo o que ouvimos dos lábios de Jesus. 

Afinal de contas, aonde é que Ele queria chegar com uma declaração como essa?

Quando o médico prescreve um remédio para o seu paciente, sua intenção é de curá-lo. Que médico prescreveria um veneno? Porém todo remédio tem efeitos colaterais. Basta checar a bula do remédio para verificar os efeitos indesejáveis que o mesmo provoca. Se parássemos para ler algumas dessas bulas, jamais nos automedicaríamos, como é costume de muitos. Há remédios que provocam insônia, enjoo, taquicardia, e outras sensações que preferiríamos evitar. Porém o médico não vai deixar de prescrevê-los por conta disso. O que lhe importa é que seu paciente seja curado, à despeito dos efeitos imediatos inevitáveis, e ainda que a médio ou longo prazo.

A paz oferecida por Cristo funciona mais ou menos como uma vacina, que uma vez ministrada provoca reações no organismo, semelhantes àquelas do vírus que intenta combater. E é exatamente aí que reside a eficácia da vacina, pois estimula a reação dos anticorpos, provocando assim a cura do organismo. 

Algo semelhante ocorreu quando aquelas duas mulheres vieram a Salomão disputando um recém-nascido. Cada uma dizia que o filho era seu. Como o sábio rei equacionou o problema? Ordenando que se lhe trouxessem uma espada, e repartissem a criança em dois, dando a metade para cada mulher. Aquela que preferiu abrir mão da criança para poupar-lhe a vida revelou ser a verdadeira mãe. Alguém se atreveria a dizer que a intenção de Salomão era dividir a criança ao meio?

Com tal declaração, Jesus estava deixando Seus discípulos de sobreaviso. O fato de segui-lo, abraçando a Sua mensagem revolucionária, provocaria efeitos colaterais momentâneos, que atingiriam em cheio seus relacionamentos familiares. Porém este não seria o resultado final.

Naquela época, qualquer judeu que se convertesse à fé cristã era considerado traidor, e por isso, corria o risco iminente de ser deserdado e sofre o espólio de seus bens.[1]

Poucos versos antes nesta mesma passagem, Jesus disse: “Um irmão entregará à morte outro irmão, e o pai ao filho; e os filhos se levantarão contra os pais, e os matarão” (v.21). Repare que isso, mais que uma simples previsão, foi uma prevenção. Em momento algum Jesus estimulou desavença na família. Por conta disso, no afã de estimular a Seus discípulos a se manterem fiéis naqueles tempos tempestuosos, Jesus os conclamou a abrir mão de suas próprias vidas. Nem mesmo os vínculos familiares deveriam ser mais importante do que o comprometimento com a mensagem do reino de Deus. 

“Quem ama o pai ou a mãe mais do que a mim, não é digno de mim; quem ama o filho ou a filha mais do que a mim, não é digno de mim. E quem não toma a sua cruz, e não vem após mim, não é digno de mim. Quem achar a sua vida perdê-la-á, e quem perder a sua vida por minha causa, achá-la-á.” Mateus 10:37-39

Observe que tais desavenças familiares seriam os efeitos colaterais imediatos, e não os efeitos permanentes da pregação do evangelho. Haveria perdas, porém, não seriam definitivas. Perde-se agora, para ganhar depois. Portanto, a paz permanente pode custar para nós um mal entendido provisório. 

É claro que um familiar que ainda não tenha passado pela mesma experiência com Deus, poderá se sentir temporariamente menosprezado. Ninguém quer ser preterido. O marido quer ser a pessoa mais importante da vida da esposa, e quando se dá conta de que agora este lugar é ocupado por Cristo, é natural que se sinta enciumado. O mesmo acontece na relação entre pais e filhos. E até entre amigos. Porém esta sensação tende a diminuir à medida que o convertido passa de demonstrar o amor de Cristo na maneira como conduz seus relacionamentos. E assim, o prejuízo momentâneo resulta em ganhos permanentes.

Aos poucos, os pais vão percebendo que seu filho, uma vez convertido a Cristo, está se tornando num filho ainda melhor. O marido ficou mais atencioso. A esposa mais carinhosa. Os pais mais amorosos e participativos. Paulatinamente, as coisas vão se adequando, e a crise inicial vai cedendo à bonança.

Deixe-me ser incisivo: Não se pode julgar um remédio pelos seus efeitos colaterais. O importante é o resultado permanente.

Ao ser questionado por Pedro por haver deixado tudo para segui-lo, Jesus lhe respondeu:

“Em verdade vos digo que ninguém há, que tenha deixado casa, ou irmãos, ou irmãs, ou pai, ou mãe, ou mulher, ou filhos, ou campos, por amor de mim e do evangelho, que não receba cem vezes tanto, já no presente, em casas, irmãos, irmãs, mães, filhos e campos, com perseguições, e no mundo por vir a vida eterna.” Marcos 10:29-30

Não se trata aqui de uma promessa que só será cumprida na eternidade. Não! Começa “já no presente”. E para que desfrutemos desta paz com as pessoas que estimamos, temos que aprender a cultivá-la.

Voltando a um dos exemplos citados acima: se a esposa se converteu a Cristo, mas o marido não, isso poderá gerar uma crise inicial no casamento. O marido talvez não compreenda o fato de que agora Cristo seja a pessoa central da vida de sua esposa. Como reverter isso?

Ouçamos o conselho de Pedro:

“Semelhantemente, vós, mulheres, sede submissas a vossos próprios maridos, para que também, se alguns deles não obedecem à palavra, pelo procedimento de suas mulheres sejam ganhos sem palavra.” 1 Pedro 3:1

Não adianta argumentar, discutir, ou mesmo brigar, para tentar convencer o outro acerca do evangelho. Deve-se, antes, ganhar pelo procedimento, sem a necessidade de palavras. Este princípio pode ser aplicado a qualquer relacionamento, e não apenas ao conjugal.

Nossas boas obras devem preceder qualquer argumentação. Chegará o momento em que os argumentos contrários cederão, e quem nos rebatia passará a pedir que lhe exponhamos a razão de nosso procedimento. Pedro admoesta: “Estai sempre preparados para responder com mansidão e temor a todo aquele que vos pedir a razão da esperança que há em vós”.[2]

Se quisermos cultivar a paz em nossos relacionamentos, principalmente com os que professam fés diferentes, temos que abrir mão de termos sempre a razão. Na hora da discussão, a melhor saída é o silêncio. Todavia, se nos pedirem qualquer explicação, devemos dá-la com mansidão, sem impor nossos pontos de vista. Particularmente, não conheço ninguém que tenha se convertido  no calor de uma discussão. 

Deve-se, também, evitar questões que produzam contendas. Paulo nos aconselha a rejeitar “as questões insensatas e absurdas, sabendo que produzem contendas”. Pois, “ao servo do Senhor não convém contender, mas sim ser brando para com todos”.[3]

Se levássemos a sério tais instruções bíblicas, certamente evitaríamos a destruição de muitos relacionamentos, inclusive entre pais e filhos. Não usemos, portanto, passagens isoladas das Escrituras como justificativa para nossa intransigência.



[1]Hebreus 10:34
[2] 1 Pedro 3:15b
[3] 2 Timóteo 2:23-24a

Sobre a aprovação do texto do Estatuto da Família na Câmara de Deputados

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Por Hermes C. Fernandes

A comissão especial que discute o Estatuto da Família na Câmara dos Deputados aprovou hoje o texto principal do projeto que define família como a união entre homem e mulher. A comissão aprovou o relatório por 17 votos favoráveis e 5 contrários, numa reunião tumultuada. 

A deputada Érika Kokay (PT-DF) afirmou que o projeto "institucionaliza o preconceito e a discriminação". Já o deputado e pastor evangélico Takayama (PSC-PR) interrompeu a deputada, gritando: "homem com homem não gera" e "mulher com mulher não gera". Manifestantes contrários ao projeto rebateram: "não gera, mas cria". 

Os paladinos da moral e dos bons costumes parecem ter vencido mais uma importante batalha nesta épica guerra de nervos travada no congresso nacional. Segundo eles, a família tradicional estaria sob um acirrado ataque daqueles que almejam destruí-la, impondo à sociedade sua nefasta agenda, cujo objetivo principal seria a implantação de uma espécie de ditadura gay. 

O que seria, então, uma família ideal? De onde buscaríamos um modelo perfeito? Certamente responderiam que na Bíblia. Então, saiamos em busca de um modelo ideal de família nas páginas sagradas. Que tal a primeira família? Sim, aquela formada inicialmente por Adão e Eva. Lá estavam o pai, a mãe e os filhos. Família perfeita, não? Pena que o irmão mais velho resolveu matar o caçula. 

Se avançarmos um pouco, nos depararemos com a família de Noé. Foi com ela que Deus teria dado o restart na raça humana após o catastrófico dilúvio. Lá também estavam a figura do pai, da mãe, acompanhados de três filhos e três noras. Perfeito, não? Como manda o figurino! Só não se esqueça de que um dos irmãos resolveu avacalhar o pai após flagrá-lo nu e embriagado. É, minha gente...isso acontece nas melhores famílias. Resultado: acabou amaldiçoado! 

E que tal a família de Abraão? Estamos falando do grande patriarca hebreu, comumente chamado pelos cristãos de “pai na fé”. O problema em seu núcleo familiar é que faltava prole. Portanto, a família não era completa. Pelo menos, não segundo os defensores da tal família tradicional. O velho Abraão, aconselhado por sua esposa igualmente idosa, resolveu ter um affair com a escrava egípcia. Resultado: um filho bastardo. Foi um bafafá. 

E o que dizer de Jacó? Quatro mulheres. Doze filhos. Dez deles planejaram matar o então caçula José. Não me parece uma família que nos sirva de modelo, certo? 

Vamos pular para Davi. Homem segundo o coração de Deus. Além de suas puladas de cerca (que lhe renderam sérias dores de cabeça), teve o desprazer de amargar todo tipo de conflito entre seus filhos, desde incesto até assassinato. Sem contar que teve seu trono usurpado por seu próprio filho. 

Poderia citar outros exemplos, mas é melhor ficar por aqui. 

A família é a primeira das instituições criadas por Deus. E como tal, foi criada para o bem do homem. Vale para a família o mesmo princípio que Jesus aplicou a outra instituição divina: o sábado. De acordo com o mestre galileu, “o sábado foi feito para o homem, e não o homem para o sábado.” Semelhantemente, a família existe para oferecer ao homem certa segurança e não para ser um fardo. Não se pode colocar qualquer que seja a instituição acima do valor da vida humana. Por isso, Jesus disse que mesmo no sábado deveríamos socorrer quem estivesse em apuros. Não foi à toa que a maioria das curas que realizou foi no dia santo. 

Interessante notar que sempre que vinha a Jerusalém, o lugar onde costumava se hospedar era na casa de três solteirões num vilarejo chamado Betânia. Lázaro, Marta e Maria eram irmãos. Nenhum deles havia se casado. Portanto, não constituíam uma família de modelo tradicional de acordo com o que tem sido apontado pelos defensores da moral cristã. Para um judeu daquela época, estar solteiro na vida adulta era considerado uma desonra. Às favas com as tradições! Era na casa deles que Jesus se sentia acolhido. 

Mas o que mais intrigava os religiosos era o fato de que Jesus andava muito mal acompanhado. Eles o chamavam de “amigo de pecadores”. Prostitutas e proscritos sentavam-se para ouvi-lo. Ele jamais os recriminou. Chegou mesmo a dizer que eles precederiam os religiosos no reino dos céus. 

Uma das poucas casas bem frequentadas em que ele entrou foi a de certo religioso que ficou escandalizado ao vê-lo sendo presenteado com um perfume das mãos de uma meretriz. O que para o religioso hipócrita era a profanação da santidade de seu lar, para Jesus era a mais solene manifestação de amor. Ouso dizer que Jesus jamais havia se sentido tão amado quanto foi por aquela prostituta. 

Voltando à questão inicial deste capítulo: o que deveria ser considerado uma família ideal? Minha resposta é: aquela formada por seres humanos que se amam e se respeitam mutuamente. O que legitima uma família não são a presença de um pai, uma mãe e seus filhos, e sim o sentimento puro que une seres humanos em vínculos perenes. 

Se há amor, Deus está ali. Mas, se não há amor, nem mesmo laços consanguíneos garantem um ambiente acolhedor e saudável aos seus integrantes. 

O ideal é que todo lar fosse constituído pelas figuras paterna, materna e sua prole. Porém, vivemos em um mundo de contingências. Crianças são abandonadas. Pais se separam. Núcleos familiares se dissolvem. Num mundo imperfeito, famílias imperfeitas podem ser o cenário onde vidas serão resgatadas e amadas. 

Nunca houve, nem jamais haverá famílias perfeitas. Mas toda família, independentemente do modelo, deve ser perfeitamente capaz de amar e acolher os seus membros. 

Infelizmente, muitas famílias tradicionais desprezam e abandonam seus filhos quando descobrem sua orientação sexual. Conheço o caso de um pastor que enviou seu filho para o exterior para que a igreja não descobrisse que ele era gay. Outro caso que se tornou notório nos Estados Unidos foi o do filho de um pastor famoso que se suicidou depois que seu pai o excomungou publicamente por assumir sua homossexualidade. 

A família deveria ser o lugar onde o indivíduo fosse aceito a despeito de sua orientação sexual ou de qualquer outra coisa. Pais de verdade jamais desistem de amar. 

Confesso que me sensibilizo ao ver um homossexual que, mesmo tendo sido desprezado pela própria família, deseja dedicar seu amor e cuidado a uma criança órfã ou abandonada. Ele se propôs a dar o que jamais recebeu. Haveria algo mais louvável que isso? 

O receio que muitos têm é que uma criança criada por um homossexual acabe abraçando a mesma orientação sexual. Entretanto, praticamente todo homossexual que já conheci é oriundo de uma família tradicional. 

A maioria dos abusos sexuais perpetrados contra infantes ocorre em lares tradicionais, alguns até religiosos. 

Sinceramente, prefiro mil vezes ver uma criança acolhida por um casal homossexual a vê-la vivendo a relento, sem carinho, sem educação e privada de sua dignidade. 

Nossa hipocrisia religiosa é tamanha que preferimos ver um homossexual vivendo promiscuamente com múltiplos parceiros a vê-lo constituindo uma família numa relação monogâmica. Enquanto os paladinos da moral sobem aos palanques das marchas para Jesus ostentando um terceiro ou quarto casamento, ou exibindo um casamento de fachada onde o lugar da amante está assegurado, gays lutam pelo direito de contraírem uma união estável. 

Já está mais do que na hora de deixarmos nossas trincheiras ideológicas e enxergarmos esta demanda social com amor. 

Não será privando gays de seus direitos que conseguiremos atraí-los ao evangelho. Pelo contrário. Deveríamos defendê-los, ainda que seu estilo de vida desafie nossos escrúpulos religiosos. Acima de tudo, são seres humanos, criaturas do mesmo Deus a quem declaramos amar e servir. 

Portanto, ame-os e deixe-os amar, acolha-os e deixo-os acolher. 

Pecado é tudo aquilo que atenta contra a dignidade humana, insultando assim ao Criador. Homofobia é pecado. Preconceito, qualquer que seja, também o é. Mas “o amor cobre multidão de pecados” e que “a misericórdia triunfa sobre o juízo.” Todavia, "o juízo será sem misericórdia sobre aquele que não teve misericórdia." 

Fico a imaginar se estes nobres deputados vivessem duzentos anos atrás e tivessem que votar a definição de ser humano, que resultado obteríamos. 

Enquanto eles comemoram, parte da sociedade lamenta. Para alguns deles, apenas um voto, mas para a sociedade brasileira, um enorme retrocesso. 

Se o estado é, de fato, laico, não se pode impor uma visão religiosa de um grupo ao restante da população. Valores devem ser abraçados conscientemente e não por imposição de terceiros. 

Com isso, não apenas direitos são vetados a certos segmentos, como também se aprofunda ainda mais o abismo entre tais segmentos e a igreja.

Quando as diferenças já não fazem a menor diferença

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Por Hermes C. Fernandes


“Aprendemos a voar como os pássaros e a nadar como os peixes, 
mas não aprendemos a conviver como irmãos.” Martin Luther King


Os discípulos estavam preocupados. Motivo? Alguém estava usando o nome de Jesus para fazer milagres. Ao contar a Jesus o que estava acontecendo, imaginaram que Ele daria um basta naquilo, exigindo que se respeitasse os direitos autorais de Sua mensagem. Mas para a surpresa deles, Jesus disse: "Não lhe proibais. Ninguém há que faça milagre em meu nome, e logo a seguir possa falar mal de mim, pois quem não é contra nós, é por nós" (Mc.9:39-40).

Jesus jamais exigiu royalties ou direitos autorais de Suas obras ou mensagem. Ele queria que a mensagem fosse propagada.

Paulo também captou o mesmo espírito, e por isso, declarou: "Verdade é que também alguns pregam a Cristo por inveja e porfia (...) mas que importa? contanto que Cristo, de qualquer modo, seja anunciado, ou por pretexto ou de verdade, nisto me regozijo, sim, e me regozijarei" (Fp.1:15a,18).

A mensagem de Cristo não é monopólio de quem quer que seja.

Quanto as motivações, deixemos que Deus as julgue no momento certo. Por agora, o que importa é que a mensagem seja anunciada.

Não importa se em uma igreja protestante histórica, ou em uma paróquia católica, ou numa igreja neopentecostal, ou mesmo em um centro espiritualista ou numa mesquita. Verdade é verdade, não importa por quem esteja sendo anunciada. E quem ama a verdade, reconhece-a de cara, ainda que anunciada pelos lábios de um cético. Assim como podemos reconhecer a mentira, mesmo quando dita por aqueles que julgamos estar acima do bem e do mal.

Diferentes, mas nem tanto

Em vez de realçarmos o que nos distingue,  por que não realçamos o que temos em comum? Nem que para isso tenhamos que descobrir quais as ameaças ou inimigos que temos em comum. Talvez assim as diferenças já não façam tanta diferença.

Por exemplo: em um país muçulmano, não faz diferença se você é evangélico ou católico. Ambos se reconhecem mutuamente como cristãos.

Numa classe universitária na França, onde a maioria dos alunos se diz ateia  a diferença entre muçulmanos e cristãos perde a importância. O ateísmo pode ser visto como um "inimigo" comum para ambos os grupos, haja vista serem monoteístas.

E quando somos ameaçados por um inimigo comum a toda a humanidade? Quiçá, um inimigo externo?

Se fosse anunciado que um asteroide estivesse prestes a chocar-se com a Terra, pondo em risco a civilização humana, todas as diferenças religiosas, raciais, étnicas, culturais, perderiam totalmente sua relevância. Ateus, cristãos, espíritas, hindus, budistas, dariam as mãos num esforço coletivo para evitar a tragédia.

Pode ser que não estejamos ameaçados pela queda de um asteroide  mas certamente há outras ameaças que nos assediam, e que demandam que nos unamos em um esforço comum para enfrentá-las. Entre elas, destacamos a violência urbana, o aquecimento global, as injustiças sociais, e por último, a crise financeira global. Estaremos fadados ao fracasso, caso não nos disponhamos a deixar nossos guetos ideológicos e darmos as mãos.

Parafraseando Agostinho: "No essencial a unidade, no não essencial a liberdade, em tudo a caridade".

O Evangelho Quântico e o rompimento da lógica linear

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Por Hermes C. Fernandes

Uma das mais surpreendentes passagens do Novo Testamento é a que narra o episódio da ressurreição de Lázaro (Jo.11:1-57). Cada vez que retorno a ela, deparo-me com algo que não havia percebido antes.  É como se a cada camada explorada, fôssemos desafiados a ir ainda mais fundo.

É notório que uma das diferenças entre a narrativa de João e a dos evangelhos sinópticos é que o discípulo amado parece subverter a ordem cronológica dos fatos. Um dos exemplos disso é a purificação do templo, situada por João logo no início de seu evangelho, enquanto os demais evangelistas a situam quase ao fim de suas narrativas. Era como se João, por uma inspiração divina, percebesse que a história nem sempre é linear como imaginamos. Nela também se pode aplicar a lógica da mecânica quântica, onde, às vezes, os efeitos precedem as causas, ou ao menos, podem interferir nelas. Já que os evangelhos creditados a Mateus, Marcos e Lucas são chamados de sinópticos, tomo a liberdade de chamar João de “o evangelho quântico”.

Ao contar-nos o episódio envolvendo uma das famílias mais queridas por Jesus, João parece agir como um spoiler, antecedendo fatos que só seriam narrados na sequência do texto. Nenhum escritor em sã consciência faria isso. Seria como estragar a surpresa. Imagine começar um filme de suspense revelando de cara o maior mistério da história que se pretende contar. É como assistir a um filme ao lado de quem já o assistiu e ter que ouvi-lo descrever as cenas que ainda virão. Porém, estou convencido de que João não era um spoiler. O que ele faz é subverter a lógica linear da história, como quem quisesse deixar nas entrelinhas que somos mais influenciados pelo futuro do que propriamente pelo passado.

João começa o capítulo onze de seu evangelho informando que “estava enfermo um homem chamado Lázaro, de Betânia, aldeia de Maria e de sua irmã Marta.E Maria, cujo irmão Lázaro se achava enfermo, era a mesma que ungiu o Senhor com bálsamo, e lhe enxugou os pés com os seus cabelos” (Jo.11:1-2). Aquele bálsamo deveria ter sido usado em Lázaro. Mas Maria preferiu guardá-lo para usá-lo em Jesus. Por esta razão, Lázaro cheirava mal com apenas quatro dias de sepultamento. Defendendo-a por aquele inusitado gesto, Jesus diz que ela se antecedeu a ungi-lo, preparando-o para ser sepultado, já que, ao ser removido da cruz, não haveria tempo suficiente para prestar-lhe as devidas honras, devido à proximidade do sábado judaico. No domingo, quando outra Maria amanheceu no sepulcro para embalsamá-lo, teve a grata surpresa de não encontra-lo mais ali.

Dentro de uma cronologia convencional, primeiro se morre, para depois ser embalsamado. A irmã de Lázaro subverteu a ordem linear, ungindo Jesus dias antes que fosse sepultado. Talvez ela nem sequer tivesse ideia do que significava seu gesto. Digamos que ela tenha sido atraída por uma força vinda do futuro. E não é justamente isso que faz a fé? Ou não é a fé a certeza de coisas que se esperam e que, portanto, se insinuam no horizonte do futuro? Portanto, o que deveria influenciar nossas ações não é o passado, tampouco as demandas do presente, e sim “os poderes do mundo vindouro” (Hb.6:5).

Assim que recebeu a notícia de que Lázaro, seu amigo, a quem tanto  amava, estava enfermo, Jesus simplesmente se manteve no mesmo lugar. Era de se esperar que saísse correndo no afã de impedir que seu amigo morresse acometido daquela grave enfermidade. Mas para surpresa dos Seus discípulos, Jesus não moveu uma palha. Obviamente, isso não significava que Jesus não Se importasse. O texto faz questão de frisar que Ele amava, não somente a Lázaro, mas também às suas irmãs.

O fato de nos amar não significa que seremos poupados de certas adversidades. Por conhecer o futuro, Ele sabe exatamente como cada situação em nossa vida contribuirá para que logremos alcançar a glória derradeira.

Alguns até poderiam supor que Jesus estivesse evitando voltar àquela região devido à animosidade dos judeus que estavam dispostos a apedrejá-lo. Depois de dois dias, ao anunciar Sua decisão de finalmente visitar a Lázaro que já estava morto, Tomé, que já mostrava seu caráter incrédulo, comentou maldosamente: “Vamos nós também, para morrermos com ele.”Tomé era o típico homem preso à lógica linear da história. Para ele, o fato de Jesus não haver poupado a Lázaro da morte indicava claramente que também não os pouparia.  

Quem insiste em enxergar a vida deste prisma, está sempre com um pé atrás. Sua lógica é: se aconteceu uma vez, certamente acontecerá de novo. Suas atitudes são respaldadas pela Lei de Murphy e não pela Lei da Fé. Eles primeiro precisam ver para crer. A experiência lhes guia pela jornada da existência. Falta-lhes a disposição de dar o salto da fé. A mesma encontrada em Pedro, cuja experiência não lhe rendeu a pesca desejada, mas que aceitou o desafio de lançar sua rede sobre a Palavra, resultando numa tão grande quantidade de peixes que quase lhe afundou o barco.

A resposta de Jesus a Tomé e cia foi, no mínimo, enigmática:
Não são doze as horas do dia? Se alguém andar de dia, não tropeça, porque vê a luz deste mundo;mas se andar de noite, tropeça, porque nele não há luz.
Com efeito, Jesus estava dizendo: Não estou dando um tiro no escuro. Eu sei exatamente o que estou fazendo. Quando se vislumbra o futuro, atenua-se o papel das circunstâncias momentâneas. Por isso Jesus afirmou que Lázaro estava dormindo e que iria despertá-lo. Como Seus discípulos não entenderam, Jesus teve que desenhar: Lázaro morreu! E que bom que vocês não estavam lá quando ele morreu, pois isso os impediria de crer. Agora está explicado. Jesus não se apressou a visitar Lázaro, porque não queria que os discípulos o vissem morrer.

Nossa memória é o que nos liga ao passado. Nossos sentidos nos ligam ao presente. Mas é a fé que nos remete ao futuro. Não dá para viver pelos sentidos e pela fé ao mesmo tempo. Daí Paulo dizer: "Andamos por fé e não por vista" (2 Co.5:7).

Ao chegar a Betânia, Marta saiu-Lhe ao encontro, enquanto Maria permaneceu em casa sentada. Talvez Maria pretendesse extrair outro elogio do mestre, como o que recebera em outra ocasião, quando sua irmã, agitada como sempre, trabalhava, e ela mantinha-se sentada ouvindo atentamente o que Jesus dizia. Aparentemente consternada, Marta se dirige a Jesus, dizendo: "Senhor, se estivesse aqui, meu irmão não teria morrido." Seria esta uma confissão de fé ou uma declaração de desapontamento? Ou seria a mescla das duas coisas?

Ouçamos o que ela diz em seguida: “Mesmo agora sei que tudo quanto pedires a Deus, Ele te concederá.” Percebe-se que, mesmo depois de quatro dias, Marta não perdeu a esperança. Foi por isso que ela e sua irmã combinaram de não embalsamar a seu irmão. Provavelmente, ninguém sabia disso, nem mesmo os judeus que as visitavam naquele momento de luto profundo. Seria uma vergonha deixar de dar a honra devida a um familiar morto. Era comum que cada família trabalhasse para manter em casa uma quantidade razoável de bálsamo para o caso de um dos membros vir a falecer. Custava o equivalente a um ano de trabalho.

Ninguém pode acusar Marta de não ter esperança. Todavia, sua esperança parecia arremeter-se a um futuro distante, muito além do horizonte existencial. Tratava-se de uma esperança escatológica. Quando Jesus anuncia que seu irmão haveria de ressurgir, Marta responde incisivamente dentro de uma perspectiva escatológica cem por cento acertada: “Eu sei que ele há de ressurgir na ressurreição, no último dia.” Portanto, ninguém jamais poderá acusá-la de heresia. Sua confissão de fé estava correta. Seu credo estava dentro dos limites da ortodoxia. Porém, em ambas as declarações, Marta se revela refém.

Na primeira declaração, ela se mostra refém do futuro do pretérito: "Se o Senhor estivesse aqui, meu irmão não teria morrido." Não se trata de estar presa ao passado. No fundo, o passado não aprisiona ninguém. O que nos cativa é o futuro do pretérito, um tempo que só existe em nossa imaginação. Se no presente conjugamos o verbo ser dizendo “eu sou”, no futuro do indicativo dizemos “eu serei”, no passado dizemos “eu fui” ou “eu era”, no futuro do pretérito dizemos “eu seria”. E é assim que ficamos presos no limbo da existência, imaginando como teria sido algo se não houvesse ocorrido isso ou aquilo.

Já que ainda não inventaram a máquina do tempo, nada há que possamos fazer para alterar o que se passou. Em vez de ficar nos lastimando pelo ocorrido, devemos buscar ressignificar eventos passados à luz do presente e do porvir. Nada acontece em vão. Tudo serve a um propósito que, ainda que o desconheçamos hoje, um dia há de nos ser revelado. Como bem disse Jesus a Pedro: O que faço agora, não entendeis, mas compreendereis depois. Quando todas as peças do mosaico estiverem devidamente encaixadas, uma figura emergirá dele, e tudo, finalmente, fará sentido. Ou vivemos por fé com olhos voltados para o futuro, ou vivemos presos ao futuro do pretérito, gastando nossas energias a nos lamentar.

Na segunda declaração, Marta se revela confiante em fatos que estariam para além desta existência. Tal confiança tem o potencial de nos alienar. A fé sadia não apenas nos remete ao futuro, mas patrocina a inserção do futuro no presente. Os peixes que caíram na rede de Pedro foram trazido para o barco e do barco trazidos à praia. Não se pode vislumbrar o futuro e deixá-lo lá mesmo. A vontade de Deus feita no céu, deve ser igualmente feita na terra. O presente deve ser copulado pelo futuro. Somos, por assim dizer, o cupido que promove este encontro fecundo entre o futuro e o presente.

Se nosso presente não estiver grávido do futuro, ele estará grávido do passado e isso equivaleria a um tipo de incesto existencial.

Em vez de elogiar a ortodoxia presente na declaração de Marta, Jesus lhe responde:

Eu sou a ressurreição e a vida; quem crê em mim, ainda que morra, viverá;e todo aquele que vive, e crê em mim, jamais morrerá. Crês isto?

Em Cristo, eventos futuros se fazem presentes. Ele os atualiza, puxando-os em nossa direção como um pescador que gira a manivela de sua vara, trazendo-nos o peixe que mordiscara sua isca.

Marta lhe dá uma resposta teológica: Sim, Senhor, eu creio que tu és o Cristo, o Filho de Deus, que havia de vir ao mundo.” Pelo jeito, ela tinha respostas ensaiadas na ponta da língua, mas talvez não se desse conta das implicações de tais verdades. A gente repete feito papagaio o que outros nos disseram, mas não entende o sentido do que se diz, tampouco do que se crê. 

Não foi daquela vez que Marta conseguiu a proeza de sua irmã ao ser elogiada pelo mestre. Por isso, Marta sai à francesa, vai ao encontro de sua irmã e cochicha em seu ouvido: O Mestre está aí, e te chama.

Jesus continuava estacionado na entrada da aldeia, no lugar onde encontrara Marta, quando Maria se aproximou ofegante por causa da corrida que dera, deixando os judeus que a visitavam assustados. Ao vê-lo, Maria se lançou aos Seus pés, repetindo a mesma ladainha dita por sua irmão: “Senhor, se tu estiveras aqui, meu irmão não teria morrido.”

A declaração era basicamente a mesma, porém, a reação de Jesus foi totalmente diferente. Ele não argumentou com Maria da maneira como fez com sua irmã. A diferença era que o Marta dizia com olhos enxutos, Maria repetia com os olhos encharcados. Marta dizia o que havia decorado. Maria dizia o que partida do seu coração. O tom de Marta era o de acusação. O de Maria era o de desabafo sincero.

Jesus, pois, quando a viu chorar, e chorarem também os judeus que com ela vinham, comoveu-se em espírito, e perturbou-se,e perguntou: Onde o puseste? Responderam-lhe: Senhor, vem e vê.Jesus chorou.

Como ler isso e não se emocionar? Quem jamais poderia supor que lágrimas humanas pudessem perturbar o Criador? Mesmo sabendo o desfecho daquela história, Jesus não estava emocionalmente blindado.

Por muito tempo, os teólogos têm discutido como um Deus conhecedor do futuro poderia se deixar comover pelo sofrimento humano? Algumas teologias conceberam um deus tão, tão poderoso que tornou-se asqueroso, pois revela-se incapaz de se compadecer de nossas misérias.

Como conciliar isso? Como resolver este aparente paradoxo?

O Deus que é, e que, portanto, está para além da existência, mergulhou de cabeça na história, de modo que pudesse perfeitamente se compadecer de nós (Hb.4:15). O grande “Eu sou” não tem passado, nem presente, nem futuro. Ele não existe. Ele simplesmente é. Ele transcende a existência. Porém, em Cristo, Deus Se humaniza, Se historioriza adentrando o tempo e o espaço. De sorte que, agora, Ele tem história, passado, presente e futuro. Se antes, Ele Se apresentava como o “Eu sou” (Êx.3:14), agora Ele Se apresenta como “Aquele que era, que é e que há de vir” (Ap.1:8), “o mesmo ontem, hoje e sempre” (Hb.13:8).  

Em Cristo, Deus existe! Ele Se tornou um de nós! Por isso, Ele não apenas tem misericórdia de nós, mas também Se compadece. Ele sente nossas dores e chora nossos dissabores. O Deus Todo-Poderoso agora Se revela vulnerável ao sofrimento humano. Eis Sua fraqueza. Eis Sua loucura infinitamente mais sábia que toda nossa vã sabedoria. O Todo-poderoso também é o Todo-amoroso.

Diante daquela inusitada cena, os judeus deixaram cair suas pedras e comentaram entre si: Vede como o amava.Mas alguns deles disseram: Não podia ele, que abriu os olhos ao cego, fazer também que este não morreste?” Sempre haverá quem não se contente com qualquer que seja a demonstração de amor. Esses preferem o espetáculo sensacionalista. Ainda estão presos no limbo do futuro do pretérito.

Sem dar a mínima para isso, Jesus comoveu-se outra vez, mas agora, de maneira ainda mais profunda. Chegando-se ao sepulcro, pediu que lhe removesse a pedra que o selava.

Num descuido, Marta confessa em alto e bom tom: “Senhor, já cheira mal, porque está morto há quase quatro dias”. Por que digo que aquilo foi uma confissão pública? Porque até àquele instante, ninguém supunha que as irmãs do defunto o haviam privado das honras devidas representadas pelo embalsamento.

Jesus responde a Marta: “Não te disse que, se creres, verás a glória de Deus?

Ora, se você se der o trabalho de ler o texto inteiro, verificará que em nenhum momento Jesus aparece dizendo isso a Marta. Terá sido uma falha na narração de João? Creio que não. Prefiro acreditar que Jesus tenha dito isso quando ela lhe virou as costas para chamar sua irmã. Marta era do tipo que gostava de ter a última palavra em qualquer questão. Tão logo confessou crer que Jesus era o Cristo, virou-lhe as costas sem dar atenção ao que Ele ainda diria. De fato, Ele disse, mas ela não ouviu. Quantas coisas Ele também não nos tem dito no dia-a-dia, mas não lhe temos dado a atenção merecida?

A gente prefere uma leitura superficial, atrelada ao senso comum, comprometida em manter-nos em nossa zona de conforto. Somos seletivos dando ouvidos ao que nos conforto, mas não ao que nos confronta e desafia.

Com a pedra do sepulcro removida, Jesus levantou os olhos ao céu e disse: “Pai, graças te dou, porque me ouviste.

Mais uma vez Jesus subverte a lógica linear da história. Ele agradece ao Pai por já ter ouvido uma oração que Ele ainda faria. Mesmo estando entre nós, Ele continua enxergando para além do horizonte dos fatos históricos. Para Ele, o futuro já é. Ele é o que chama a existência as coisas que não são como se já fossem (Rm.4:17). Tomando um barco como analogia, podemos dizer que os sentidos nos ancoram na realidade, impedindo que naveguemos, os sentimentos nos fazem tocar a mesma realidade, porém, sem nos prender a ela, mas é a fé que nos provê as velas que nos fazem avançar mar a fora. Não podemos nos privar dos sentimentos, sob pena de nos tornarmos seres apáticos e alienados. Mas também não podemos nos privar da fé, sob pena de sermos vendidos ao desespero ou ao cinismo.

Depois de agradecer ao Pai, Jesus clama em alta voz dirigindo-se ao túmulo: Lázaro, vem para fora! Não foi preciso falar mais de uma vez. Vir para fora é um convite a nos tornarmos igreja (grego = ekklesia = tirados para fora). Não fora da realidade, o que seria alienação. Mas voltada para fora de si mesma, isto é, para o mundo à sua volta. Engajada na história, porém, comprometida com a eternidade.

Apesar de atender ao chamado que ecoou em seu sepulcro, Lázaro saiu com os pés e as mãos enfaixados e seu rosto envolto num lenço. O que o diferenciava de uma múmia egípcia era o fato de não ter sido embalsamado. Mesmo vivo, continuava preso. Caberia aos seus discípulos, dentre os quais estavam Marta e Maria, desatá-lo e deixá-lo ir.

Desafio semelhante é o que enfrentamos em nossos dias. Há muitos que foram regenerados, tendo experimentado o poder da ressurreição, mas que estão atados pelas tradições mofadas que lhes foram legadas. O que esta geração de cristãos precisa não é uma novo avivamento, mas de um desatamento.

Deixem Lázaro em paz! Ele precisa de um banho! Não precisa chantageá-lo para que siga a Jesus. O mesmo que o ressuscitou o atrairá a Si com o poder do Seu amor. O fato é que, no dia seguinte, Marta e Maria resolveram dar um banquete para Jesus, e adivinha quem estava sentado à mesa? Lázaro! Foi nesta ocasião que Maria quebrou o protocolo e derramou em Jesus o bálsamo que deveria ter sido usado em seu irmão. E é aí que a história começa...



Intolerância religiosa e a Teoria da Janela Quebrada

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“Se não formos capazes de viver inteiramente como pessoas, ao menos
façamos tudo para não viver inteiramente como animais.”  ― Saramago

Por Hermes C. Fernandes

No final dos anos 1960, o psicólogo social Philip Zimbardo da Universidade de Stanford (EUA), realizou um experimento em que duas viaturas idênticas foram abandonadas em vias públicas. Uma delas foi deixada no Bronx, zona pobre de Nova York, então conhecida por seu alto índice de criminalidade. A outra foi deixada em Palo Alto, zona rica e tranquila da Califórnia. Em poucas horas, a viatura abandonada no Bronx foi vandalizada. Levaram suas rodas, espelhos, rádio e até o motor. O que sobrou dela foi totalmente destruído. Já a viatura deixada em Palo Alto manteve-se intacta por uma semana. Não se dando por satisfeito, o pesquisador quebrou uma das janelas do veículo e afastou-se para ver o que aconteceria. Em pouco tempo, o carro foi totalmente depenado, da mesma maneira que ocorreu no Bronx. O psicólogo concluiu que o delito não se deu devido à pobreza, haja vista que o carro estava numa região rica e supostamente segura. O fato é que, uma janela quebrada numa viatura abandonada em via pública transmite a ideia de deterioração e desinteresse, informando aos transeuntes de que ninguém se importava, provocando, assim, uma reação inusitada de depredação.

Tomando por base esta experiência, dois criminologistas da Universidade de Harvard, James Wilson e George Kelling,[1]desenvolveram a Teoria das Janelas Quebradas, que afirma, entre outras coisas, que o delito é sempre maior em zonas onde prevaleça o descuido, a sujeira, e a desordem. Segundo esta teoria, se uma janela de um edifício aparece quebrada sem que ninguém a conserte, logo todas as outras estarão igualmente quebradas. Deve-se resolver os problemas quando ainda estão pequenos, impedindo, assim, que se agigantem e se perca o controle sobre eles. Em 1990, os autores foram enviados a Nova York onde desenvolveram um trabalho no metrô para comprovar sua teoria. Eles apostaram que se as “janelas quebradas” fossem arrumadas, a delinquência seria reduzida. Em outras palavras, se o lixo fosse recolhido, os ratos não encontrariam o ambiente perfeito para se proliferarem.

A partir daí, a polícia começou a combater os pequenos delitos, como entrar sem pagar, urinar, mendigar e pichar as paredes das estações e os trens. Meses depois, a delinquência no metrô de Nova York havia caído 75%. Aos poucos, a mesma política começou a ser adotada em outros lugares, tais como praças e parques, obtendo resultado semelhante.  Animado com o resultado, em 1994, o prefeito Rudolph Giuliani adotou uma política de combate ao crime que se tornou conhecida como “Tolerância Zero”. A expressão que soava repressiva e autoritária, foi responsável por impulsionar a popularidade do prefeito e recuperar a confiança dos nova-iorquinos na segurança pública.

Lembro-me perfeitamente da primeira vez em que visitei Nova Iorque em 1991, fui advertido por um transeunte por causa da filmadora que carregava comigo a tiracolo na região da Broadway. Depois da implementação desta política, voltei várias vezes à cidade, e presenciei famílias inteiras transitando pelas ruas da cidade tarde da noite em completa segurança.

O termo “tolerância zero” virou até bordão nos lábios do SeuSaraiva, personagem vivido pelo saudoso ator e comediante Francisco Milani no programa Zorra Total da Rede Globo de Televisão. “Como é assim”, dizia ele em tom sarcástico, “pergunta idiota, tolerância zero!”[2]

Não precisa grande esforço para perceber que o título do livro que estou prestes a lançar foi inspirado no termo usado para designar a política responsável por coibir o avanço da criminalidade em Nova York. Todavia, trata-se de um trocadilho. O assunto tratado aqui não é propriamente a redução da criminalidade, mas a promoção da paz entre os diferentes segmentos sociais, e em especial, os membros dos mais variados credos. E é aqui que nossa proposta se afasta daquela inspirada da Teoria das Janelas Quebradas. Eu diria que o que nos inspira seria outra teoria, a do “Telhado de vidro”. Não se joga pedra no telhado alheio quando o nosso é de vidro. Algo bem próximo do que Jesus disse aos que lhe trouxeram a mulher flagrada em adultério e que intentavam apedrejá-la: “Quem não tiver pecado, que atire a primeira pedra!”

Contextualizando o adágio, não se deve mirar nos vitrais do templo alheio. Nossos vitrais são feitos de cacos como outro qualquer, portanto, tão vulneráveis quanto os dele. O vitral é um tipo de vidraça composta por pedaços de vidro coloridos, que geralmente representa cenas ou personagens bíblicos, sendo um dos elementos arquitetônicos marcantes característicos do estilo gótico.

Cada tradição religiosa montou seu próprio mosaico com os cacos disponíveis em sua cultura e experiência espiritual. Independentemente dos arranjos feitos e das figuras que deles tenham emergido, o mais importante é que sejam translúcidos, isto é, que se deixem penetrar pela luz. Daí encontrarmos tantos pontos convergentes nas mais variadas tradições. A diferença entre umas e outras são as imagens compostas. Em nosso caso, é a imagem de Cristo que se nos salta os olhos,[3]d’Aquele que é “o resplendor da glória de Deus e a expressão exata do seu ser.”[4]

Oxalá todos tivessem o mesmo privilégio. Mas como poderíamos cobrar de outros a mesma compreensão que temos sem considerar o contexto no qual nasceram e cresceram, a cultura na qual estão inseridos, a educação que receberam, etc.? Todavia, Deus, em Sua soberania e misericórdia, projeta a Sua luz sobre todas as vidraças. Por isso, João, o apóstolo do amor, nos brinda com uma das mais lindas definições acerca de Cristo, o Logos Divino: “Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens; a luz resplandece nas trevas, e as trevas não prevaleceram contra ela.(...) Pois a verdadeira luz, que alumia a todo homem, estava chegando ao mundo.”[5] De acordo com Paulo, cada um deve andar de acordo com a luz que houver recebido (Fp.3:16). E antes que nos esqueçamos, “a quem muito foi dado, muito será exigido; e a quem muito foi confiado, muito mais será pedido” (Lc. 12:48).

Só deve ser tolerante quem tem consciência de que a perfeição não é um dos seus atributos. Caso contrário, estaremos incorrendo no erro eloquentemente denunciado por Jesus:

“Como você pode dizer ao seu irmão: ‘Irmão, deixe-me tirar o cisco do seu olho’, se você mesmo não consegue ver a viga que está em seu próprio olho? Hipócrita, tire primeiro a viga do seu olho, e então você verá claramente para tirar o cisco do olho do seu irmão.”Lucas 6:42

Todos temos virtudes e defeitos, independentemente da fé que professamos. Nem mesmo nossa religião está imune a isso.

Basta uma rápida incursão pela história de cada igreja ou credo para verificar quantos erros foram cometidos em nome da fé.

Veja, por exemplo, o caso da Santa Inquisição que pesa sobre os ombros da Igreja Católica, em que milhares de pessoas foram condenadas, torturadas e executadas, acusadas de heresia ou bruxaria, num dos capítulos mais tenebrosos da história recente da civilização. Todavia, ela está longe de ser o único caso de intolerância religiosa da chamada Época Moderna. Augusto Comte, o pai do positivismo, conta em seu livro Filosofia Positiva que “a intolerância do protestantismo certamente não foi menos tirânica do que aquela com que o catolicismo é muito difamado”.[6]“Os próprios reformadores... isto é, Lutero, Beza, e especialmente Calvino, eram intolerantes aos dissidentes  tanto quantos aos católicos Romanos.”[7]

Martinho Lutero, o tão celebrado reformador alemão, promoveu a perseguição aos anabatistas, ala mais radical da Reforma, por discordarem, dentre outras coisas, do método usado no batismo. Por conta disso, milhares de pessoas foram encarceradas, torturadas e executadas.  O reformador também fazia duras críticas aos judeus e seus escritos acabaram sendo usados pelos nazistas como justificativa ao seu antissemitismo responsável pela morte de seis milhões de judeus durante a Segunda Guerra Mundial. Deve-se salientar, entretanto, que próximo do fim de sua vida, Lutero retornou ao seu sentimento inicial de tolerância. Em seu último sermão ele aconselhou o abandono de todas as tentativas de destruir a heresia por força.[8]

João Calvino, o reformador suíço, instaurou em Genebra a Venerável Companhia, responsável pelo magistério e o Consistério, responsável pela disciplina religiosa. Em seu ardoroso zelo, Calvino promovia confissões, denúncias, espionagens, visitas às residências, levando muitos à prisão, à tortura e, em alguns casos, até a morte. Durante o tempo em que governou Genebra, a população era proibida de cultivar hábitos considerados nocivos como jogos, dança e teatro. Dentre as vítimas da intolerância de Calvino, destaca-se o médico Miguel Serveto, queimado por causa de suas proposições consideradas heréticas. Em apenas quatro anos de governo (1542-1546), 58 pessoas foram condenadas à morte por heresia.[9]

O que mais nos causa ojeriza quanto às perseguições protestantes é o fato de serem incompatíveis com uma das doutrinas fundamentais do Protestantismo: o livre exame das Escrituras. É, no mínimo, contraditório defender o direito de se interpretar a Bíblica de acordo com a sua consciência, e em seguida, torturar e matar alguém por ter feito justamente isso.

Quem conhece a dor de ser perseguido, não tem o direito de perseguir. Os puritanos que fugiram da Inglaterra por causa da perseguição sofrida por parte da Coroa, exportaram para as colônias que fundaram nos Estados Unidos o mesmo espírito persecutório. O que pode ser atestado em episódios como o das “bruxas de Salem”, ocorrido em Massachusetts no final do século XVII, quando várias adolescentes foram executadas sob a acusação de praticarem feitiçaria, invocando espíritos quando reunidas ao redor de uma fogueira. “O que é surpreendente é o fato de que, após essas experiências, esses fugitivos não aprenderam a lição de tolerância, e não concederam aos que eram diferentes... liberdade... Quando eles se encontraram em uma posição para perseguir, eles tentaram superar o que haviam sofrido.”[10] Entre os grupos vítimas da intolerância deles estavam os Quakers. Um membro desta “Sociedade dos Amigos” poderia sofrer a perda de uma orelha, e depois, a outra, além de ter a ponta da língua queimada a ferro quente, e às vezes, a morte.

De acordo com o teólogo metodista Georgia Harkness, “muitas vezes, a resistência à tirania e à procura de liberdade religiosa são combinadas, como na revolução puritana na Inglaterra; e os vencedores, tendo alcançado a supremacia, em seguida, criam uma nova tirania e uma nova intolerância.” [11] Incrivelmente, os Quakers foram uma exceção à regra. William Penn, fundador do Quakerismo, também fugiu para a América devido à perseguição religiosa, onde fundou uma colônia tolerante que hoje é o estado da Pensilvânia. Os Quarkers tem um honrado histórico de tolerância, e estiveram na vanguarda do movimento de abolição da escravidão na América no século XIX.

As religiões tendem a se reinventar, tornando-se moderadas e tolerantes. Porém, não podemos fazer vista grossa quanto à possibilidade de que sempre haja alas mais radicais, geralmente saudosistas de um tempo considerado áureo. É assim no cristianismo, tanto católico quanto protestante, e é assim no islamismo.

Todos temos telhado de vidro! Não se esqueça disso.

Toda religião tem um histórico de perseguição, seja sofrida ou impingida. Em maior ou menor grau, todas guardam em seus anais episódios de intolerância. Se não quisermos retroalimentar o ciclo, resta-nos perdoar as perseguições sofridas e nos arrepender das perseguições impingidas.  

Aproveitando a teoria das janelas quebradas, minha proposta neste posté a de reduzirmos nossa intolerância ao máximo, na esperança de que um dia ela alcance zero. Enquanto houver o menor vestígio de intolerância, seja em nosso discurso ou em nossa postura, servirá de munição para aqueles que fazem do ódio a sua bandeira.

Pequenos gestos de intolerância são um chamariz para os intolerantes. Semelhantemente, pequenos gestos de gentileza e cordialidade podem desarmar espíritos, fazendo prevalecer o respeito, e, sobretudo, o amor.




[1]WILSON, James Q.; Kelling George L. “Broken windows: the police and neighborhood safety”, in: Atlantic Monthly de março de 1982.
[2]Francisco Ferreira Milani, nascido em São Paulo, em 19 de novembro de 1936, falecido em 13 de agosto de 2005 de falência múltipla dos órgãos provocada por câncer no reto, foi ator, dublador, humorista e político brasileiro.
[3] Gálatas 3:1
[4] Hebreus 1:3
[5] João 1:4-5,9
[6] COMTE, Augusto, Philosophie Positive, IV, 51.
[7] Dicionário da Igreja Cristã de Oxford, Referência 1383.
[8]DURANT, Will (S), The Reformation, (volume 6 of 10-volume The Story of Civilization, 1967), Nova York: Simon & Schuster, 1957,  págs. 420-430.
[9]Ibidem, pág. 473.
[10]STODDARD, John L., Rebuilding a Lost Faith, Nova York: P.J. Kenedy & Sons, 1922, pág. 207.
[11]HARKNESS, Georgia (P), John Calvin: The Man and His Ethics, New York: Abingdon Press, 1931, pág. 222.

Vidas Cruzadas

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Por Hermes C. Fernandes

Meu nascimento foi motivo de orgulho para os meus pais. O nome que me deram significa “iluminado”. Fui criado para ocupar o lugar de prestígio que hoje ocupo. Não foi fácil, mas cheguei. Hoje sou o principal da sinagoga. Cada vez que assumo o púlpito, sinto-me o homem mais importante do mundo, o porta-voz da Lei e dos Profetas. Sou responsável por manter a lei e a ordem em minha comunidade. Todos me ouvem, respeitam e reverenciam.

Mas nem tudo é como sempre quis. Nem todas as minhas orações foram atendidas. Como todo bom judeu, sempre pedi a Deus para que jamais me desse uma filha. Afinal de contas, Ele é conhecido como o Deus de Abraão, Isaque e Jacó, e não como o Deus de Sara, Rebeca e Raquel. Mas por alguma razão, Ele resolveu me castigar. Quando eu partir, meu lugar não será ocupado por alguém em cujas veias corra o meu sangue. Um nome tão importante quanto meu, não poderá ser perpetuado.

Se em vez de uma menina, o Eterno houvesse me dado um garoto, faltaria apenas um ano para o seu bar-mitzvá, a festa que marca a passagem do menino para a vida adulta. Em vez disso, tudo o que tenho agora é uma menina doente à beira da morte. Foi necessário que ela adoecesse gravemente para que eu descobrisse o quão importante é na minha vida.

Apesar de não ser o que pedi a Deus, ela é tudo o que tenho. Nos seus doze aninhos de vida, aprendi a amá-la. Seu jeitinho meigo me conquistou. O que será de mim se perdê-la? Todo o conhecimento que tenho das Escrituras, o prestígio de minha posição na sinagoga, parecem não valer de nada nesta situação.

Ouvi falar de um rabino da Galileia que tem poderes místicos. Dizem que ele levanta paralíticos, restaura a vista de cegos e que até já ressuscitou um morto, filho de uma viúva de um vilarejo chamado Naim. Mas ele é um herege. Por causa dele, as sinagogas se esvaziaram. As pessoas preferem ouvi-lo nas ruas e praias a nos ouvir no conforto de um lugar apropriado para cultuar a Deus. Seus ensinos são completamente heterodoxos. Ele até aceita mulheres entre seus discípulos. Dizem por aí que são elas que bancam seu ministério itinerante. Onde já se viu uma coisa dessas? Mas talvez ele seja a minha única esperança.

O único problema será lidar com a repercussão. O que dirão outros príncipes das sinagogas quando souberem que recorri a ele? Já não basta o fato de ser o único dentre eles que não poderá ser sucedido por seu filho?

Tenho que fazer algo urgentemente, antes que seja tarde demais. Minha filha não pode esperar. Quer saber? Às favas com a minha reputação.

Por sorte, justamente agora, na hora do meu desespero, o tal mestre da Galileia vem passando por aqui. Preciso chamar-lhe a atenção. Não quero que me veja como um rival descontente por estar perdendo o público. Já sei! Vou me lançar aos seus pés e rogar encarecidamente que vá à minha casa e cure a minha princesinha.

Funcionou! Ele aceitou o meu pedido. Mas será que esta multidão não poderia se afastar um pouco? Não estou acostumado com tanto empurra-empurra. 

Espera aí. Acho que conheço aquela mulher. O que ela faz aqui? Lembro-me muito bem dela. Precisamente na época em que nasceu minha filha, tive que ordenar que se afastasse do convívio social por causa de sua hemorragia crônica. Não fiz isso por maldade. Estava apenas cumprindo a lei. Só não podia imaginar que sua reclusão demoraria tanto. Achei até que já estivesse morta. Quem poderia sobreviver a doze anos de sangramento? Só não me lembro de ter dado permissão para que ela voltasse a transitar assim livremente.

É impressão minha ou ela está tentando se disfarçar? Acho que ela notou que eu a percebi. Tenho que tomar alguma providência. Ela está desafiando a minha autoridade. Será que Jesus não sabe de sua condição? Ele deveria repreendê-la por descumprir a lei!

Eu ouvi bem ou estou alucinando? Jesus está perguntando quem o tocou? É isso mesmo? Ora, ora, tanta gente aqui, apertando-o, oprimindo-o, empurrando-o. Que pergunta mais descabida!

Jesus, tenho pressa! Não fique aí se distraindo com essa gente. Minha filha está à beira da morte.

Com quem ele está falando? Por que interrompeu sua caminhada?

Não! Não pode ser! Ele está falando com aquela mulher. Deixe-me aproximar. Preciso saber o teor da conversa. Provavelmente, ele está repreendendo-a e mandando-a de volta para casa. Até que enfim. Quando tudo isso houver passado, vou cuidar disso pessoalmente. Esta mulher não pode ficar impune. Ou será que ela se esqueceu de que a lei diz que qualquer um que a tocar se torna impuro? Tanto ela, quanto quem a tocar devem ser apedrejados. Pensando bem... a situação é mais grave do que imagino. No meio desta confusão toda vai ser difícil saber quem a tocou. Terei que fazer uma sindicância. Na verdade, isso deveria ser feito agora mesmo. Depois que as pessoas se dispersarem, será impossível descobrir quem a tocou ou se deixou tocar por ela. Meu Deus, onde é que estou com a cabeça? Minha filha morrendo, e eu aqui preocupado com formalidades da lei. Mas não é para isso que ocupo a posição de príncipe da sinagoga? Mas se me distrair com isso, Jesus não chegará a tempo para curá-la. Quer saber?  Já fiz vista grossa para tanta coisa na vida... E pelo jeito, Jesus está cuidando da situação. Já estou bem perto deles. Deixe-me ouvir o que ele está dizendo a ela.

O que? Não pode ser. Recuso-me a crer no que acabo de ouvir. Jesus se deixou tocar por ela? Então, ele agora está imundo. Como poderei recebê-lo em minha casa? Isso comprometeria a pureza do meu lar. O fato de tê-la curado, estancando sua hemorragia, não atenua sua culpa. Mesmo curada, ela deveria esperar sete dias até que pudesse circular novamente. E isso teria que passar por mim. Na ausência de sacerdotes, sou a maior autoridade espiritual da área. Despedindo-a em paz, Jesus está passando por cima da minha autoridade. Meu Deus, que situação constrangedora.

Preciso de uma desculpa para me livrar desta saia justa. Alguém que não respeita a lei não pode ser um enviado de Deus.

Um amigo de ofício chegou na hora certa para me dar as últimas notícias da minha filha. Jesus não precisa mais se dar o trabalho de ir à minha casa. Minha filha acabou de falecer.

Doze aninhos! Ela parecia tão bem até um dia desses, brincando com outras crianças, gritando meu nome e correndo para os meus braços quando eu chegava. De repente, a luz se apagou. Tudo tão rápido.

Se aquela mulher não houvesse distraído Jesus, talvez houvesse dado tempo de evitar esta tragédia. Será que ela não poderia ter esperado um pouco mais? Pensando bem, ela começou a morrer quando a minha filha começou a viver. E agora, ela voltou a viver quando minha filha acabou de morrer. Doze anos! Para uma, doze anos morrendo à prestação. Para a outra, doze anos de vida escapando subitamente por entre os dedos.

Doze anos me lamentando por ter tido uma filha em vez de um filho que pudesse me suceder. Doze anos em que minha alma sangrou pelas frestas abertas pelo meu preconceito. Como gostaria de voltar atrás! Eu teria valorizado cada segundo da vida de minha princesa.

Como ele ousa insistir ir à minha casa? Eu já lhe disse que minha filha morreu? Crer somente? É isso que ele requer de mim? E o que, afinal, significa “crer somente”? Minha mente está um turbilhão? Minha reputação foi destruída no momento em que me prostrei diante dele. Minha autoridade foi desafiada quando ele se deixou tocar por aquela mulher e ainda a despediu em paz. E para completar minha desgraça, recebo a notícia de minha filha está morta. Como posso “crer somente”?

Mas se ele insiste, tudo bem. O problema é que ao entrar em minha casa, por haver sido tocado por aquela mulher imunda, ele a tornará igualmente impura. Sua presença vai profanar o meu lar. Só me faltava esta! Ter meu lar profanado. Tudo o que me sobrou irá por água a baixo.

Minha filha! Por que me deixou tão cedo?

Ele está pedindo para que não choremos? Está dizendo que ela não está morta, mas apenas dorme? De onde tirou isso? Como pode brincar assim com a nossa dor?

Ele a está tocando? Mas ela está morta! A lei diz que isso o torna imundo! Não se pode tocar num cadáver! Mas pensando bem, ele já estava imundo ao se deixar tocar por aquela mulher. Ora, para quem já está molhado, que diferença faz uma gota d’água?

Não acredito no que meus olhos estão vendo! Ele a está levantando. Meu Deus! Minha filha voltou à vida!  Que homem é este capaz de trazer de volta os mortos? Quem é este que estancou a hemorragia da minha alma? Que me fez dar maior valor à vida do que às tradições? Finalmente, poderei fazer jus ao nome que recebi dos meus pais. Hoje sou Jairo, o iluminado, porque Jesus refletiu sobre mim a Sua luz.


* Baseado em Lucas 8:40-55, Levítico 15:25, 27-28 e Números 19:11-14


Não há luz, sem que haja ardor!

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Hermes C. Fernandes

Uma das figuras que mais me intrigam nas Escrituras é João Batista, o primo excêntrico de Jesus. Quanto mais leio sobre ele, mais me identifico com sua história. Dentre os testemunhos que Jesus dá acerca do último dos profetas da Antiga Aliança, chama-me a atenção aquele em que diz:“João era a lâmpada que ardia e iluminava, e vós escolhestes alegrar-vos por algum tempo com a sua luz” (João 5:35).


Repare num detalhe: Para iluminar, a lâmpada tem que arder!

Havia algo apaixonante em João, que exercia atração sobre as pessoas, a ponto de deixarem o conforto de seus lares para ouvi-lo no deserto, um dos mais inóspitos ambientes da terra. As pessoas sentiam-se atraídas como mosquitos atraídos pela luz.

Jesus disse que somos a luz do mundo. O problema é que queremos iluminar sem arder. Somos uma geração apática, sem fogo, sem paixão. Não me refiro àquela paixão incitada por melodias melosas, mas uma paixão consciente pela verdade e pela possibilidade de transformação do mundo.

Embora João jamais tenha realizado qualquer milagre, Jesus não hesitou considerá-lo o maior expoente dentre os profetas. Maior que o próprio Elias, que fez descer fogo do céu por diversas vezes. Maior que Moisés, o Legislador de Israel, que dentre muitos milagres, fez abrir o Mar Vermelho para que os hebreus escapassem do exército egípcio. Para Jesus, João não foi apenas o maior dos profetas, mas o maior de todos os homens:

“Em verdade vos digo que, entre os que de mulher têm nascido, não apareceu alguém maior do que João Batista; contudo, o menor no reino dos céus é maior do que ele” (Mt.11:11).

Com João, encerrava-se uma Era. Ele era como “o último dos Moicanos”. Cristo vinha anunciar a Era do Reino de Deus. E o menor dos cidadãos do Seu Reino, poderia ser considerado maior que João. Ora, somos os cidadãos do Reino de Deus. Por que deveríamos ser considerados maiores que João? Para respondermos a esta pergunta, teremos que compreender melhor a diferença entre as duas alianças, a do Monte Sinai e a do Monte Gólgota.

Paulo diz que Deus “nos fez capazes de ser ministros de uma nova aliança, não da letra, mas do Espírito; pois a letra mata, mas o Espírito vivifica” (2 Co.3:6). A letra em questão é uma alusão às tábuas da Lei, recebidas por Moisés no Monte Sinai.

João era ministro da Velha Aliança. Nós somos ministros da Nova Aliança. A Lei foi chamada de “ministério da morte, gravado com letras em pedras”. De fato, ela veio “em glória, de maneira que os filhos de Israel não podiam fitar os olhos na face de Moisés, por causa da glória do seu rosto, ainda que desvanecente” (v.7). Preste atenção neste detalhe: a glória revelada no rosto de Moisés era desvanecente, isto é, fugaz, passageira, que estava destinada a diminuir gradativamente.

Era esta a glória do ministério dos profetas, inclusive de João.

O texto sagrado diz que Moisés, ao descer do Monte, teve que cobrir sua face por causa da glória que nele resplandecia. Muitos acreditam que tal medida foi necessária para que os filhos de Israel pudessem olhar pra ele. Porém Paulo nos revela a verdadeira razão:

“E não somos como Moisés, que punha um véu sobre a sua face para que os filhos de Israel não fitassem o fim daquilo que desvanecia” (v.13).

Moisés percebeu que à medida que descia do Monte, a glória diminuía. O que os filhos de Israel pensariam disso? Para encobrir-lhes tal realidade, o profeta preferiu usar um véu. Em contraste com essa glória desvanecente, a glória da Nova Aliança é permanente e definitiva (v.11). Por isso, não precisamos cobrir nossa face.

João compreendeu perfeitamente isso, quando disse acerca de Jesus: “Convém que Ele cresça, e eu diminua”. Uma glória se esvai pra que a outra venha em caráter definitivo. Porém, ambas devem produzir ardor em seus expoentes.

Para iluminarmos, isto é, para resplandecermos a glória de Deus em nossas vidas, nosso coração deve arder como ardia o coração dos discípulos que encontraram Jesus à caminho de Emaús.

Há, entretanto, uma diferença entre o arder da Antiga Aliança, e o arder da Aliança Definitiva.

No primeiro encontro que Moisés teve com Deus no deserto, ele avistou uma sarça que ardia, porém não se consumia (Êx.3:2). E foi justamente isso que o atraiu à sarça. Quando a glória se foi, a sarça se manteve intacta.

Da mesma maneira, a glória da Antiga Aliança mantinha intacta a natureza humana. Por isso, ela desvanecia. O ego humano não lhe servia de combustível. Já na Nova Aliança as coisas são bem diferentes. Nosso “eu” não pode ser poupado. Basta olhar para Paulo, que considerava que se “eu” estava crucificado com Cristo. Em 2 Coríntios 12:15, ele diz:

“Eu de muito boa vontade gastarei, e me deixarei gastar pelas vossas almas, ainda que, amando-vos cada vez mais, seja menos amado.”

Portanto, a chama que deve arder em nós e nos consumir é o AMOR. E para iluminar os que estiverem à nossa volta, não poderemos nos poupar. Não há como nos mantermos intactos, enquanto a chama do Espírito arde em nós. Sua glória consome nosso orgulho, nossa prepotência, nossa vaidade, de maneira que já não vivemos mais, mas Cristo vive através de nós (Gl.2:20).

Somos ofuscados pela glória, de forma que quem fitar em nós, em vez de nos ver, verá a glória de Cristo em nós. Interessante notar que a glória resplandecente no rosto de Moisés foi escondida sob o tecido de um véu. Já a glória que resplandeceu no rosto de Jesus durante a Sua transfiguração, fez com que o tecido que cobria todo o Seu corpo fosse igualmente transfigurado (Mt.17:1-8).

Assim também, a glória colocada em nós deve tocar e “transfigurar” toda a realidade à nossa volta. Isso inclui a cultura, a educação, a ciência, e tudo mais.

Nada escapa do escopo dessa glória. Embora lá estivessem Elias e Moisés, dois dos maiores ícones da Antiga Aliança, quando os discípulos fitaram seus olhos, a ninguém mais viram, a não ser Jesus. Seus corações ardiam tanto, que Pedro chegou a sugerir que se construíssem ali três tabernáculos. Porém, não se pode circunscrever a glória em alguns metros quadrados, e nem tentar contê-la por um espaço de tempo. A glória da Nova Aliança não pode ser contida por tabernáculos, nem escondida sob véus. Seu destino é encher todo o Cosmos, a fim de transfigurá-lo.

Que esta chama continue ardendo em nós, e nos consumindo, conduzindo-nos de glória em glória, até a manifestação final, o Dia Perfeito.

"A vereda dos justos é como a luz da aurora que vai brilhando mais e mais até ser dia perfeito" (Pv.4:18).

Os contemporâneos de João escolheram alegrar-se por algum tempo com a sua luz (Jo. 5:35).Nós, porém, fomos escolhidos para nos alegrar eternamente com a Luz do Novo Dia, um dia que jamais terá fim.

Antes que a notícia se espalhe...

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Por Hermes C. Fernandes

Jerusalém estava em polvorosa. Alguma medida precisava ser tomada imediatamente, antes que a notícia se espalhasse.
Depois de dez dias de absoluta tranquilidade, membros daquela seita proveniente da Galileia voltaram a atacar.
Houve quem apostasse que depois da morte de seu líder, seus discípulos se dispersariam. Rolou até um boato de que ele havia reaparecido depois de morto. Mas durou só uns quarenta dias. Por alguma razão, seus seguidores evaporaram. Dizem que estavam reunidos em algum lugar à espera de alguma coisa.
De repente, a paz foi interrompida novamente. Dois deles entraram no templo com um homem gritando e saltando. Todos reconheceram que o homem que os acompanhava era o mesmo que por muito tempo era colocado diariamente à porta do templo para pedir esmola. Testemunhas alegam que era paralítico. Como, então, podia estar saltando daquele jeito? E para completar a confusão, os dois galileus teriam feito o milagre em nome daquele que havia sido crucificado. Segundo eles, o rabino que teria provocado aquela desordem no templo munido de chicote havia retornado à vida e os teria autorizado a curar e a ensinar em seu nome.
O conselho resolveu reunir-se em caráter emergencial. Representantes das sinagogas, anciãos, escribas e até o sumo-sacerdote e todos de sua linhagem se reuniram para ouvir o depoimento daqueles pescadores.
As autoridades ficaram embasbacadas com a ousadia de homens completamente iletrados. Inicialmente, pensaram que se tratava de homens com boa formação, haja vista que na véspera do ocorrido, teriam sido flagrados por alguns transeuntes oriundos de vários países que vieram celebrar a festa de pentecoste falando em diversos idiomas.
Mas uma coisa era evidente: eles haviam estado com Jesus. Notava-se, principalmente, pela maneira como se conduziam (At.4:13). Definitivamente, não eram um embuste, como tantos que costumavam aparecer em Jerusalém naquela época do ano.
Somente quem houvesse estado com Jesus poderia falar em seu nome com tanta autoridade, sem preocupar-se em chamar a atenção para si.
Somente quem houvesse estado com Jesus seria capaz de demonstrar tamanho amor por um desconhecido como aquele paralítico.
Eles não lhe deram esmolas como lhes havia sido pedido, mesmo porque, já estavam há cinquenta dias fora de seu domicílio, sem trabalhar. Não tinham nem para si, como poderia ter para partilhar. Porém, do que haviam recebido, isso partilharam sem hesitar.
Foi a primeira vez que aquele mendigo adentrou o templo. Afinal de contas, portadores de deficiências não eram bem-vindos lá.
Somente quem havia estado com Jesus se conduziria ao templo para orar, mesmo depois de haver passado os últimos dez dias em oração à espera da promessa que seu mestre fizera.
Como negar o fato de haverem estado com Jesus?
Pergunto-me se é esta mesma impressão que bilhões de cristãos ao redor do planeta conseguem passar.
Nossa postura denuncia com quem temos estado, de que fonte temos nos saciado.
Diferentemente de Paulo, capaz de citar os filósofos gregos em pleno areópago de Atenas, Pedro e João eram homens rústicos, trabalhadores braçais, gente do povo. Porém, isso não ofuscava o fato de haverem estado com Jesus.
Como se não bastasse, eles também se faziam acompanhar do homem que acabara de ser curado (v.14).
Quem tem estado com Jesus, invariavelmente trará em sua companhia os excluídos, os que não encontram seu lugar na religião, os que esmolam a atenção da sociedade.
Eles nem sequer precisaram pedir que aquele homem testemunhasse a seu favor. Ele simplesmente queria usar sua recém-adquirida habilidade para caminhar ao seu lado.
Quem desfruta da companhia de Jesus, aprecia a companhia daqueles que encabeçam a sua lista de prioridade.
Porém, duvido que o ex-paralítico se prontificaria a oferecer sua companhia a quem não lhe houvesse feito bem.
Quem, afinal, tem sido atraído a caminhar conosco? Quem tem se colocado como testemunha daquilo que temos pregado e vivido? A quantos temos beneficiado com nosso discurso, e, sobretudo, com nossa prática?
Quantos já adentraram o “templo” conosco, depois de viver esmolando à sua porta?
Se tão-somente houvessem atendido ao pedido daquele homem, dando-lhe esmola, certamente não teriam sua companhia. Aliás, nem mesmo teriam sido convocados para depor ante as autoridades.
Se não quisermos ter dor de cabeça, a melhor alternativa é cruzarmos os braços e fazermos vista grossa diante do sofrimento causado pela exclusão. Pior do que a dor causada pela deficiência em si é a dor da rejeição.
Bastava que Pedro e João fingissem não vê-lo ali onde diariamente era colocado, e não teriam tido que comparecer perante as autoridades para se explicar.
Mas, como não se compadecer? Principalmente depois de terem sido cheios do Espírito Santo? Como ficar indiferente ao sofrimento humano? Que tipo de espiritualidade poderia nos alienar em vez de nos empurrar para fora ao encontro da miséria humana?
Começo a me perguntar com quem temos estado ultimamente. De que adianta tanta demonstração de erudição, sem qualquer demonstração de compaixão e amor? 
Dizem que certo dia, Tomás de Aquino foi convidado pelo Papa Inocêncio IV a conhecer os tesouros da igreja em Roma. Num dado momento, o Papa teria dito: 
- Vês, Tomás? A Igreja não pode mais dizer como nos primeiros dias: “Não tenho ouro nem prata...”
Pelo que respondeu:
- É verdade. Mas também não pode mais dizer ao coxo: “Levanta-te e anda!”
Aquino estava coberto de razão. O amor ao poder substituiu o poder do amor. E hoje parece que as coisas não estão diferentes. Por isso, preferimos desfilar ao lado dos poderosos e não dos oprimidos e explorados.
Ameaçar os discípulos a não falarem mais em nome de Jesus foi uma total perda de tempo. Eles nem ao menos se comprometeram a alterar o teor de sua mensagem. Pelo contrário. Responderam: “Julgai vós se é justo, diante de Deus, ouvi-vos antes a vós do que a Deus; porque não podemos deixar de falar do que temos visto e ouvido” (At.4:19-20).

Hoje, os poderosos nos incentivam a pregar o que já temos pregado, pelo simples fato de que nossa mensagem não se constitui qualquer ameaça ao status quo. Em vez isso, ela endossa e justifica o espírito da época, com sua ganância, futilidade e preconceitos. Nossa versão do evangelho mantém o excluído onde sempre esteve, poupando as classes dominantes do constrangimento de vê-lo celebrar sua liberdade. Para driblar o que restou de nossa consciência, alegamos que esta proximidade com os poderosos tem o objetivo de garantir que tenhamos esmola para distribuir entre os necessitados. E assim, garantimos que tudo permanecerá como antes no quartel de Abrantes. 
Quem tem estado com Jesus deve reproduzir no mundo o que recebeu, sem tirar, nem por; sem se preocupar em fazer média com ninguém. Nosso único compromisso é com quem nos habilitou a fazer as mesmas obras, amando como ele amou, repartindo como ele repartiu, acolhendo a quem ele jamais abandonou. 

Abrindo o jogo sobre SALVAÇÃO

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Por Hermes C. Fernandes

Por que há tanta discordância entre os cristãos quando o assunto é salvação? Ora, se temos um único Salvador, não deveríamos pensar e sentir a mesma coisa acerca do assunto? Talvez, parte do problema se deva aos múltiplos significados da palavra grega “soteria” traduzida por “salvação” no Novo Testamento. Basta que encontremos tal palavra, e logo achamos tratar-se do mesmo conceito, isto é, da salvação da alma. Todavia, há diversas passagens que não nos permitem atribuir o mesmo significado. Por exemplo: Em Filipenses 1:19, Paulo afirma que as orações daquele povo lhe resultariam em salvação. Ora, Paulo ainda não era salvo? E mais: nossa salvação não é obra exclusiva de Cristo? Se contamos com Sua constante intercessão junto ao Pai, isso não nos bastaria? Porventura, não lemos em Hebreus que Ele “pode também salvar perfeitamente os que por ele se chegam a Deus, vivendo sempre para interceder por eles” (Hb.7:25)? Então, que estória é essa que a oração de alguém pode resultar em salvação para nós? A resposta é óbvia. Não se trata de salvação no sentido soteriológico, isto é, salvação da alma, mas de livramento de alguma circunstância em particular. Paulo estava preso e desejava ser “salvo” daquela condição.

Outra passagem interessante é a que diz que a mulher só seria salva, “dando à luz filhos” (1 Tm.2:15). Imagine quão injusto seria se a salvação da mulher estivesse condicionada à maternidade? Mas é óbvio que não era disso que o apóstolo falava nesta passagem. Dentre várias interpretações possíveis, ele estaria se referindo ao fato de que a mulher que não tivesse filhos para ajudá-la em sua velhice, certamente estaria em maus lençóis, pois aquela era uma sociedade machista, em que a mulher não gozava da autonomia que conquistou posteriormente ao longo dos séculos. Se Paulo estivesse se referindo à salvação da alma, estaria se opondo radicalmente ao resto das Escrituras, dentre as quais destaco o que fora dito por Pedro de que os maridos deveriam honrar suas esposas como vaso mais frágil, levando em conta serem elas herdeiras juntamente com eles da graça da vida (1 Pe. 3:7). Portanto, a mesma graça que salva a homens, salva igualmente a mulheres, independentemente de serem ou não mães.

Ainda outra passagem instigante é a que Paulo afirma suportar tudo “por amor dos eleitos, para que também eles alcancem a salvação que está em Cristo Jesus em glória eterna”(2 Tm.2:10). Logo de cara, temos a impressão de que ele esteja falando da salvação eterna, isto é, daquela que se aplica à alma. E de fato, este é o assunto em questão. O desejo do apóstolo era que todos os eleitos fossem salvos, e, para tal, ele se dispunha a sofrer. Todavia, não se trata de um sofrimento expiatório, isto é, capaz de salvar. O que Paulo tinha em mente era o sofrimento decorrido de expor-se pela pregação do Evangelho. Afinal, o meio escolhido por Deus para que fôssemos salvos é a pregação. Porém, isso está longe de atribuir aos nossos esforços um valor salvífico. Caso contrário, seríamos co-redentores. Nada há que se acrescentar ao sacrifício feito por Cristo, que não apenas viabiliza nossa salvação, mas a efetua. Seu sacrifício não nos torna salváveis, mas salvos. Outra passagem que pode parecer sugerir que nosso sofrimento tenha atribuições expiatórias é a que Paulo afirma cumprir em sua carne “o resto das aflições de Cristo, pelo seu corpo, que é a igreja” (Col.1:24). Caso não tomemos os devidos cuidados, cederemos à tentação de atribuir ao sofrimento impingido a Paulo e demais apóstolos um poder salvífico. Como se Cristo houvesse pago apenas a entrada e deixado um carnê para ser quitado por Seus apóstolos, ou quiçá, por todos os Seus discípulos. Porém, o que lemos nas Escrituras é que o preço pela nossa salvação foi integralmente pago na cruz. O brado de “está consumado” indica isso. O escritor de Hebreus diz que “já não resta sacrifício pelos pecados” (Hb.10:26) e que “por meio de um único sacrifício, ele aperfeiçoou para sempre os que estão sendo santificados” (Hb.10:14). Então, o que Paulo quis dizer com isso? O que ele teria a acrescentar ao sacrifício de Cristo, afinal?

Creio que esta questão pode ser resolvida considerando ao menos porções de outros dois textos da lavra do mesmo apóstolo. No primeiro deles, Paulo diz: E, ainda que seja oferecido por libação sobre o sacrifício e serviço da vossa fé, folgo e me regozijo com todos vós” (Fp 2:17). E no outro, já em clima de despedida, ele afirma: ”Porque eu já estou sendo oferecido por libação, e o tempo da minha partida está próximo” (2 Tm 4:6). Repare que em ambos encontramos a palavra “libação”. O que consistia tal prática? Era uma oferta de líquidos, em geral de vinho ou de azeite, ou mesmo de água, derramada sobre o sacrifício oferecido a Deus. Paulo dá a entender que, uma vez que o sacrifício perfeito pela nossa salvação foi oferecido a Deus por Jesus Cristo, o que nos resta é oferecer nossas vidas como libação sobre este sacrifício. Isso não agregar valor algum ao sacrifício, mas atribui-lhe honra e dignidade. É neste contexto que Paulo diz que cumpria o que restava das aflições de Cristo. Não se trata, portanto, de complementar o que já está feito, mas de reconhecer seu valor. Sobre isso, João diz em sua primeira epístola: Nisto conhecemos o amor: que Cristo deu a sua vida por nós; e nós devemos dar a vida pelos irmãos” (1 Jo.3:16).


Uma das máximas mais usadas por cristãos no mundo inteiro é a que diz “Só Jesus salva!”. Quem, em sã consciência, se atreveria a discordar dela? Entretanto, deparamo-nos com Paulo aconselhando a Timóteo a ter cuidado de si mesmo e da doutrina, “porque, fazendo isso, te salvarás, tanto a ti mesmo como aos que te ouvem” (1 Tm.4:16). Ora, se só Jesus salva, que recomendação mais estranha é esta de Paulo a seu pupilo! Salvar a si mesmo e, de quebra, os que o ouviam? É isso mesmo, Arnaldo? Este é mais um caso clássico de salvação fora do contexto soteriológico. “Salvar” aqui é sinônimo de beneficiar. Com efeito, Paulo estava dizendo: Se você agir desta maneira, vai ajudar a você mesmo e àqueles que o acompanham, entende?

O mesmo se dá nas passagens em que Jesus diz a alguém a quem curou:“A tua fé te salvou” (Mc.5:34). Ninguém pode salvar a si mesmo no sentido soteriológico. Portanto, ninguém é salvo por sua própria fé. Caso contrário, teríamos em que nos vangloriar diante de Deus e o ciclo do pecado se retroalimentaria. Aliás, não podemos sequer nos estribar em nossa fé, uma vez que a mesma nos fora conferida por Deus como um dom, e, portanto, não vem de nós mesmos. Neste caso em particular, não se trata de salvação da alma, mas de cura do corpo.

Ninguém salva ninguém! Pelo menos, não no sentido soteriológico.

Então, o que dizer das passagens abaixo?

“Sabei que aquele que fizer converter um pecador do erro do seu caminho salvará da morte uma alma e cobrirá uma multidão de pecados.” Tiago 5:20

“E se é com dificuldade que o justo se salva, o que será do ímpio e do pecador?”1 Pedro 4:18

“Como também eu em tudo agrado a todos, não buscando o meu próprio proveito, mas o de muitos, para que assim se possam salvar.” 1 Coríntios 10:33

Na primeira passagem em questão, salvar tem o sentido de poupar. Salvar alguém da morte é o mesmo que poupar sua vida, isto é, impedir que colha o fruto resultante dos seus erros.

Na segunda passagem, salvar tem o sentido de escapar. Considerando o contexto, vemos que Pedro está se referindo ao juízo de Deus que cairia sobre a sociedade como um todo, começando pela própria casa de Deus. Em outras palavras, ninguém sairia ileso. E os critérios deste juízo seriam tão rigorosos que dificilmente um justo escaparia, quanto mais um pecador.

E na terceira passagem, Paulo está falando sobre abrir mão de agradar a si mesmo para que isso traga algum benefício aos demais. Aqui, “salvar” significa “aproveitar”.

Como vemos, o assunto é bem mais complexo do que geralmente julgamos. Há tantos significados para “salvação” que mesmo um calvinista ferrenho poderá concordar que, num sentido estrito, pode-se perder a salvação. Não a salvação eterna, oferecida como um dom irrevogável, mas a salvação como um livramento de uma situação, por exemplo. O escritor de Hebreus inclui na galeria dos heróis da fé as mulheres que “receberam pela ressurreição os seus mortos”, mas também os que “foram torturados, não aceitando o seu livramento, para alcançarem uma melhor ressurreição” (Hb.11:35). O vocábulo traduzido aqui como “livramento” é apolytrósis que em todas as demais passagens bíblicas é traduzido como “redenção”, um sinônimo para “salvação”. Seria como dizer que eles tiveram que perder aquela salvação para receber uma superior.

Tudo vai depender do sentido da palavra geralmente apreendido quando se considera o contexto imediato em que é aplicada.

Porém, quando o assunto é a salvação, aquele dom imerecido nos outorgado exclusivamente pela graça, as Escrituras são unânimes e consistentes em dizer: “Não há salvação em nenhum outro, pois, debaixo do céu não há nenhum outro nome dado aos homens pelo qual devamos ser salvos (At. 4:12). E Ele só foi aprovado como nosso Salvador por não haver sido salvo! Isso mesmo! Jesus perdeu a salvação! Antes que me chame de herege, leia atentamente o que dizem as Escrituras:

“Agora o meu coração está angustiado, e que direi? Pai, salva-me desta hora? Mas foi precisamente para esta hora que eu vim.”João 12:27

Apesar da disposição demonstrada nesta passagem, o fato é que, no auge de Sua angústia, Ele chegou mesmo a pedir que o Pai O salvasse daquela hora. 

Imagina se o Pai O houvesse atendido, salvando-O daquela hora? Estaríamos todos irremediavelmente perdidos. Salvá-lo “daquela hora” resultaria em nossa perdição por toda a eternidade. Uma hora que valia pela eternidade. Não foi em vão que Ele rogou aos Seus discípulos que O acompanhavam na hora decisiva para toda a humanidade: “Nem uma hora podeis vigiar comigo?” O peso da responsabilidade era tão grande que Ele apelou aos Seus companheiros que O ajudassem a carregar. Mas eles insistiam em dormir...

O escritor sagrado nos informa que “durante os seus dias de vida na terra, Jesus ofereceu orações e súplicas, em alta voz e com lágrimas, àquele que o podia salvar da morte, sendo ouvido por causa da sua reverente submissão. Embora sendo Filho, ele aprendeu a obedecer por meio daquilo que sofreu; e, uma vez aperfeiçoado, veio a ser o autor da eterna salvação para todos os que lhe obedecem”(Hb.5:7-9).

Deus, o Pai, ouviu-O, mas não O atendeu. Para que pudesse salvar-nos sem o custo de Sua justiça, Seu Unigênito não poderia ser poupado. Ora, se “nem mesmo a seu próprio Filho poupou, antes o entregou por todos nós, como não nos dará também com ele todas as coisas?” (Rm.8:32). A salvação oferecida em Jesus não se limita à alma, mas abarca tanto nossa existência quanto nossa essência. Ele é quem nos salva em todos os sentidos possíveis. Ele é quem nos livra, nos poupa, nos cura, nos esforça, nos beneficia, quer diretamente, quer através de Seus inúmeros canais. Portanto, a Ele, e exclusivamente a Ele, sejam dados a honra, a glória, o poder e a majestade por todas as Eras e gerações. 

O Pai é nosso quando o pão também o é

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Por Hermes C. Fernandes

Pai nosso que está no céu, porém, sempre acessível a todos que o buscam. Que seu nome jamais seja profanado por aqueles que dizem representá-lo.

Que o seu reino nos encontre onde quer que estejamos, e que sua vontade  prevaleça sobre nossos projetos pessoais. 

Que a terra seja uma extensão do céu, lugar onde a justiça e o amor andem de mãos dadas.

Que o pão que nos for dado cotidianamente seja compartilhado com os demais em vez de ser guardado para o dia seguinte. Que o acúmulo de bens seja considerado o cúmulo do egoísmo, enquanto sua distribuição generosa desperte em nós a esperança de dias melhores.

Que o perdão que nos foi graciosamente concedido, seja prodigamente estendido aos demais. Que assim como fomos perdoados, possamos igualmente perdoar, sem exigir reparação. E que jamais nos aproveitemos da dívida alheia para chantagear ou tirar proveito em benefício próprio.

Não nos deixe cair na tentação de achar que somos o centro do universo, merecedores de atenção especial, agindo como se o mundo nos devesse alguma coisa. Nem nos permita ser tentação aos outros, a fim de expor sua fraqueza, e assim, justificar a nossa.

Livra-nos do mal, principalmente, daquele que possamos fazer ao próximo, mesmo que isso nos traga alguma vantagem.

Que jamais nos esqueçamos de que o Pai é nosso, e não de uns ou de outros; mas o reino é dele, e por isso, admite nele quem ele quiser, sem ter que dar satisfação a ninguém. Seu reino é infinitamente maior do que o perímetro que nossa espiritualidade egoísta nos permite ver. O pão é nosso, mas o poder de concedê-lo pertence a ele. Se este poder nunca cessa, sua provisão também jamais faltará. Que desculpa teríamos para acumular em vez de repartir? Que justificativa haveria para a nossa ganância e cobiça? A dívida perdoada era nossa, e nada fizemos para merecer seu perdão. Os méritos são dele. Logo, a glória deve ser atribuída inteiramente a quem de direito.  Dele foi a iniciativa, e a ele caberá a finalização. Ele é o início e o fim. A nós, seus filhos, cabe a alegria de sermos o meio, o canal através do qual sua superabundante graça alcance também os demais. 

Se o Pai, o pão e o perdão são nossos, então, somos todos irmãos. 

Que assim seja.

Viagens no tempo registradas na Bíblia?

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Por Hermes C. Fernandes

O texto que se segue é um exercício daquilo que chamo de "Ficção Teológica". Não deve, portanto, ser tomado como doutrina. Apesar da coerência do que proponho aqui, não me atrevo a classificá-lo desta forma. 
***
“O que foi, isso é o que há de ser, e o que se fez, isso se tornará a fazer; nada há novo debaixo do sol”. Eclesiastes 1:9

A Bíblia é um livro cheio de histórias e personagens misteriosos. Entre eles, destacamos Melquisedeque e Elias. Ambos aparecem do nada, para depois desaparecerem súbita e misteriosamente.

De Melquisedeque se diz que era “rei de Salém, sacerdote do Deus Altíssimo, que saiu ao encontro de Abraão quando este regressava da matança dos reis, e o abençoou”[1]. Seu nome significa “rei de justiça” e “rei de paz”.

As Escrituras sempre relataram a genealogia de seus personagens, demonstrando com isso, que eram seres reais, que viveram em determinada época da História, e não seres míticos. Porém,  Melquisedeque aparece do nada, “sem pai, sem mãe, sem genealogia, não tendo princípio de dias, nem fim de vida, mas sendo feito semelhante ao Filho de Deus”. Como se não bastasse, lemos que ele “permanece sacerdote para sempre”. O escritor de Hebreus nos leva a considerar “quão grande era este, a quem até o patriarca Abraão deu o dízimo”. E aqui, “sem contradição alguma, o menor é abençoado pelo maior”. E ele arremata, afirmando que Melquisedeque é “aquele de quem se testifica que vive”[2] .

Ora, diante de todas essas evidências, que alternativa temos, senão admitir que Melquisedeque é ninguém menos que o próprio Cristo? Alguns teólogos afirmam que Melquisedeque seria uma espécie de Teofania, uma manifestação de Cristo pré-encarnado. Ora, se isso fosse verdade, Melquisedeque não surgiria como um ser humano, de carne e osso, e sim, como um espírito.

Creio que Melquisedeque era o próprio Jesus, em carne e osso, trazendo conSigo o DNA de Maria, Sua mãe terrena. Aquele corpo que segurava o pão e o vinho oferecidos a Abraão, era o mesmo que segurou o pão e o vinho na noite da Santa Ceia. Como isso seria possível se todavia Jesus não havia encarnado? Ora, 
Jesus não encarnou mais de uma vez. Foi na Plenitude dos tempos que Ele Se fez carne, e habitou entre nós. Apesar disso, afirmo que foi com Cristo que o patriarca Abraão se encontrou naquele dia. Isso é testificado pelo próprio Jesus, ao declarar: “Vosso pai Abraão exultou por ver o meu dia; viu-o e alegrou-se”.[3]
Se Melquisedeque é Cristo, e este só Se fez carne uma vez, logo, como se explicaria a aparição de Melquisedeque/Cristo como uma pessoa de carne e osso muitos séculos antes da encarnação? Seria apenas uma ilusão de ótica? Ou, quem sabe, uma espécie de holograma?

Creio que não!

Não poderia o Filho de Deus ter viajado no tempo, voltando dois mil anos, até os dias de Abraão, para apresentar-Se ao patriarca? A menos que não creiamos que para Ele tudo seja possível, isso me parece factível.

Investiguemos o caso de Elias.

Esse profeta excêntrico surge repentinamente na História, em um momento de grande crise espiritual em Israel.

Ele é introduzido como “Elias, o tisbita, dos moradores de Gileade.”[4]

Nada se sabe sobre o significado do termo “tisbita”. Alguns arriscam dizer que um tisbita era alguém natural de uma cidade que poderia se chamar Tisbe, ou coisa parecida. Mas o fato é que jamais encontraram tal cidade, nem mesmo qualquer referência a ela, nem na Bíblia, nem em qualquer outro documento antigo. Diz-se que Elias era dos moradores de Gileade. Embora exista um lugar com esse nome nas Escrituras, Gileade significa “região rochosa”. Ele era proveniente das montanhas. Tal dado só acrescenta mistério à figura do profeta. Ele era um homem das cavernas, das montanhas. Ele não tinha casa, família, trabalho, ou qualquer ligação com aquele mundo, com aquele tempo.

Suas atividades como profeta, duraram cerca de 7 anos, e terminaram abruptamente, quando foi tomado por um redemoinho, diante do olhar de várias testemunhas (ao todo, 51 pessoas, entre Eliseu e os filhos dos profetas).

Para onde foi Elias? Pro lugar e tempo de onde teria vindo! Mas antes de voltar para o “presente”, ele fez uma breve escala no “futuro”. O redemoinho que o levou, o aterrissou no monte, para uma breve conferência com Jesus e Moisés, no evento que ficou conhecido como "Transfiguração". Elias ziguezagueou no tempo, indo ao passado, depois ao futuro, e retornando ao presente para poder experimentar a morte como todo ser humano.

Opa! O que Moisés estava fazendo ali? Elias, tudo bem, afinal de contas, não havia experimentado a morte. Mas Moisés morreu, e acerca disso a Bíblia não deixa qualquer dúvida. Antes de prosseguir nossa investigação sobre Elias, vamos tentar entender a situação de Moisés.

Ora, mortos não aparecem. Isso apoiaria a doutrina espírita, que por sua vez, não encontra respaldo bíblico. Aliás, os espíritas se valem desta passagem para defender a doutrina do contato com os mortos.

Não há qualquer mal entendido. Moisés realmente morreu. Deus não poderia ter mentido, quando disse ao profeta: “Morrerás no monte a que vais subir, e serás recolhido ao teu povo”.[5] E está registrado: “Assim Moisés, servo do Senhor morreu ali, na terra de Moabe, como disse o Senhor. Este o sepultou num vale, na terra de Moabe (...) mas ninguém sabe, até hoje, onde fica a sepultura”.[6]

Se Moisés realmente morreu, a ponto do Arcanjo Miguel disputar seu corpo com Satanás, como se explica a sua aparição no Monte da Transfiguração, em conferência com Jesus e Elias?

Creio que uma resposta possível seja a viagem no tempo. Durante o tempo em que Moisés passou no monte Sinai, Deus poderia tê-lo transportado para o futuro, para participar daquele extraordinário evento.

Vamos relembrar a experiência de Moisés no Monte, quando pediu que Deus lhe mostrasse a Sua glória. Talvez haja ali alguma pista que confirme a nossa suposição.

O texto diz:

“Então disse Moisés: Rogo-te que me mostres a tua glória. Respondeu-lhe o Senhor: Eu farei passar toda a minha bondade diante de ti, e te proclamarei o nome do Senhor. Terei misericórdia de quem eu tiver misericórdia, e me compadecerei de quem me compadecer.”[7]

O que Deus quis dizer com fazer passar toda a Sua bondade perante Moisés? No texto original, a palavra traduzida por “bondade” é TOV, a mesma usada em Gênesis 1, toda vez que Deus avalia a Sua obra: “E viu Deus que isso era BOM”(TOV). Fazer passar todo o Seu BOM diante de Moisés, talvez signifique fazer um retrospecto da história, revelar-lhe toda a criação, pois é por meio dela que a glória de Deus é manifestada. Em um ínfimo lapso de tempo, Moisés testemunhou toda a criação, desde o primeiro TOV, até a última avaliação, quando Deus viu que tudo o que tinha feito era MUITO BOM (TOV MEOD). Moisés virtualmente viajou no tempo e no espaço, para assistir ao espetáculo da Criação, a fim de relatá-lo para nós.

E quanto à frase “te proclamarei o nome do Senhor”? Creio que ali lhe fora revelado o nome que é sobre todos os nomes, o nome de Jesus. E mais: creio que Moisés foi levado a um encontro pessoal com o portador desse nome no episódio da Transfiguração.

A frase seguinte é: “Terei misericórdia de quem eu tiver misericórdia, e me compadecerei de quem me compadecer”. Geralmente, traduzimos isso como se Deus estivesse apenas declarando que teria misericórdia de quem Ele quisesse ter misericórdia. Mas o fato é que, no hebraico, esse é um dos textos mais misteriosos das Escrituras. Poderíamos traduzi-lo ao pé da letra dessa maneira: “Trarei graça o que houver trago graça e compadecerei o que houver compadecido”. Em outras palavras, farei o que já fora feito. Era como se Deus, propositadamente, misturasse os tempos verbais futuro e passado. Era, ainda, como se Moisés entrasse numa dimensão atemporal, onde não houvesse distinção entre o que se foi, e o que virá a ser.

O mais impressionante do texto vem agora. Deus disse a Moisés:

“Não poderás ver a minha face, pois homem nenhum pode ver a minha face, e viver. Disse mais o Senhor: Eis aqui um lugar junto a mim; aqui, sobre a penha, te porás. Quando a minha glória passar, eu te porei numa fenda da penha, e te cobrirei com a minha mão, até que eu haja passado. Depois, quando eu tirar a mão, me verás pelas costas; mas a minha face não se verá.”[8]

O único lugar seguro para que um mortal pudesse contemplar a glória de Deus era a tal penha, em cuja fenda Moisés deveria se esconder. A palavra traduzida por penha é TSUR, que também é traduzida por forma. Lembremo-nos que Jesus é a forma (imagem) do Deus invisível. Em outras palavras, a glória de Deus só poderia ser vista em Jesus. Somente amparado na fenda dessa Rocha, Moisés teria contato com aquela Graça e Compaixão, reveladas em Jesus. Séculos depois, João diria que “a lei foi dada por intermédio de Moisés; a graça e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo.”[9]

Moisés pôde assistir in loco à manifestação de uma graça que só se revelaria plenamente em um futuro distante. Ele literalmente viajou no tempo e no espaço.

Deus lhe advertiu quanto à impossibilidade de ver a Sua face. Ele só poderia ver as Suas costas. A palavra traduzida por “costas” é ACHORAI, e possui duplo sentido. ACHORAI também significa “depois”. Deus estava dizendo que o que Moisés viria era o Seu “depois”, referindo-se ao tempo em que estaria encarnado entre os homens.

Lucas descreve assim o episódio em que Moisés e Elias se encontraram com Jesus:

“Estando ele orando, transfigurou-se a aparência do seu rosto, e suas vestes ficaram brancas e resplandecentes. Estava falando com ele dois homens, Moisés e Elias, os quais apareceram em glória, e falavam da sua morte, a qual havia de cumprir-se em Jerusalém.”[10]

Teria Moisés e Elias trazido alguma informação de que Jesus não dispunha? De primeira mão, a impressão que se tem é essa. Eles teriam vindo contar a Jesus algo que Ele desconhecia acerca de Sua morte. Mas há uma interpretação alternativa: o assunto da conferência era este, porém era Cristo quem encabeçava a conversa. Afinal, como podemos conferir nos versos anteriores, Jesus já estava muito bem informado acerca do preço que deveria ser pago pela salvação dos homens, e até sobre o tipo de morte que teria. Se não, Ele não teria dito: “É necessário que o Filho do homem sofra muitas coisas, e seja rejeitado (...) seja morto e ressuscite no terceiro dia (...). Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, tome cada dia a sua cruz e siga-me.”[11]

E quanto a Elias? Já vimos que ele embarcou em um redemoinho, para desembarcar no monte da Transfiguração. De onde veio esse excêntrico profeta que enfrentou Acabe, Jezabel e os profetas de Baal em seus dias? Ele veio do futuro.

Por que não há registro do nascimento de Elias nas Escrituras? Por que não encontramos sua genealogia? Simplesmente porque Elias era ninguém menos que João Batista.

Não estou falando de reencarnação. Tal doutrina não tem amparo bíblico. Estou falando que Elias veio ao mundo como João, filho de Zacarias e Isabel. E que, num dado momento, durante o período em que vivia no deserto, foi levado ao passado, para profetizar a Israel.

Vamos às evidências:

1 – João Batista simplesmente aparece repentinamente no deserto da Judeia, conclamando as pessoas ao arrependimento.[12] Onde ele esteve durante o tempo em que desapareceu das páginas sagradas? Compare o relato de Marcos acerca do surgimento do ministério de João Batista e do início do ministério de Jesus. De João, diz-se que ele simplesmente "apareceu" do nada, batizando no deserto (1:4), enquanto de Jesus diz-se que "naqueles dias, veio Jesus de Nazaré da Galileia" (v.9). Isso tão lhe parece sugestivo?

2 – Tanto João Batista, quanto Elias vestiam-se da mesma maneira. João: “As vestes de João eram feitas de pêlos de camelo, e ele trazia um cinto de couro na cintura.”[13] Elias: “Era um homem vestido de pêlos, com os lombos cingidos de um cinto de couro.”[14] Nem João era um copiador de Elias, ou mesmo sua reencarnação. Elias e João eram a mesma pessoa.

3 – O próprio Jesus declara que João era Elias: “Pois todos os profetas e a lei profetizaram até João. E, se quiserdes dar crédito, ele é o Elias que havia de vir. Quem tem ouvidos para ouvir, ouça.”[15]

4 – Elias só apareceu no monte com Jesus e Moisés, após a morte de João Batista. Alguém poderia argumentar que, se fosse João, os discípulos o teriam reconhecido, e invés de dizer terem visto Elias, diriam terem visto João. Mas devemos considerar que Elias estava em meio à nuvem da glória, e que o brilho no rosto de Jesus ofuscava tudo à Sua volta. Eles só reconheceram que se tratava de Elias e Moisés, porque certamente Jesus lhes contou depois.

Afinal, eles não eram contemporâneos daqueles profetas, e jamais os haviam visto.

Portanto, não foi Elias que reencarnou em João, como afirmam os espíritas, mas foi João Batista que teria viajado no tempo, e vivido por sete anos entre o povo de Israel, durante a época de sua maior apostasia. Não me admiro que Jesus tenha afirmado que entre os nascidos de mulher, não houve maior que João.

Outra argumentação sustenta que se João fosse Elias, ele não teria negado. O texto diz que os sacerdotes e levitas lhe perguntaram: “Quem és tu? Ele confessou e não negou, confessou: Eu não sou o Cristo. Perguntaram-lhe: Então quem és? És tu Elias? Ele disse: Não sou. És tu profeta? Respondeu: Não.”[16] Ora, ele não apenas negou ser Elias, como também negou ser profeta. Entretanto, Jesus declara que ele era Elias e profeta. Não creio que Jesus haja mentido. 
Nem que João tenha mentido deliberadamente. Ele apenas disse o que achava de si mesmo. Ele não se considerava um profeta, embora definitivamente o fosse. Ele não se achava Elias, porque sua identidade original era de João. Seria como perguntar a Clark Kent se ele é o super-homem.

Creio que Elias nasceu neste mundo como João, foi levado para o deserto, de lá embarcou para o passado, viveu entre os contemporâneos de Acabe por sete anos, ao ser tomado pelo redemoinho, desembarcou no Monte da Transfiguração, de lá retornou um pouco ao passado, surgiu no deserto, vestido das mesmas roupas, viveu no tempo de Herodes, para lá morrer.

Seguindo esta linha de raciocínio, podemos dizer que ao ouvir a voz que dizia "Este é meu filho amado", enquanto batizava Jesus, João teve aquela sensação de déjà vu, pois a ouvira "antes" no monte da Transfiguração (embora o evento tenha se dado depois...). Aquela declaração era uma espécie de senha para que ele tivesse a certeza de que aquele a quem batizava era o mesmo com quem se encontrara no futuro envolto numa nuvem de glória. 

Há ainda o profeta Isaías, que de acordo com João, “viu a glória de Jesus, e falou a seu respeito.”[17]

Pelo que tudo indica, a nuvem da glória de Deus é capaz de levar o homem a experimentar um nível de comunhão tão profundo com Deus, que o torna hábil a transcender o tempo e o espaço.

O livro de Isaías fala de um fenômeno de proporções astronômicas. A sombra do relógio de Acaz voltou dez graus.[18] Ora, para que isso acontecesse, a Terra teria que girar ao contrário, o que, astronomicamente, traria resultados nefastos para todos os seus habitantes. De duas, uma. Ou a Terra retrocedeu em sua rotação, ou o tempo retrocedeu. O mesmo se deu quando Josué lutava contra os amorreus. [19] 
Sem contar João na Ilha de Patmos, que afirmou ter sido “arrebatado em espírito no dia do Senhor”, recebendo diretamente de Jesus a ordem de escrever “as coisas que tens visto, e as que são, e as que depois destas hão de acontecer.”[20]

Ainda que não me atreva a dogmatizar acerca disso, devo confessar que tal hipótese exerce poderosa atração sobre a minha mente, e, a meu ver, só acrescentaria glória Àquele que era, é e há de vir. 

______________________________________

[1] Hebreus 7:1
[2] Hebreus 7:3-4a; 7,8b
[3] João 8:56
[4] 1 Reis 17:1
[5] Deuteronômio 32:50a
[6] Deuteronômio 34:5-6
[7] Êxodo 33:18-19
[8] Êxodo 33:20-23
[9] João 1:17
[10] Lucas 9:29-31
[11] vv.22-23
[12] Mateus 3:1
[13] Mateus 3:4a
[14] 2 Reis 1:8
[15] Mateus 11:13-15
[16] João 1:19b-21
[17] João 12:41
[18] Isaías 38:8
[19] Josué 10:12-13
[20] Apocalipse 1:10,19

Viagens no tempo e a Bíblia - Para além das suposições

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“A distinção entre passado, presente e futuro é apenas uma ilusão teimosamente persistente.”
Albert Einstein

Devo admitir minha surpresa com a repercussão do meu post sobre supostas alusões às viagens no tempo nas páginas da Bíblia Sagrada. O que seria apenas um exercício do que chamo de “ficção teológica” provocou reações diversas. Alguns leram-no como se fosse a explanação de uma nova doutrina ou revelação. Por conta disso, resolvi debruçar-me uma vez mais sobre o tema, e confesso que encontrei novos indícios de que o assunto não é estranho às Escrituras. Pus-me a perguntar: e se tais viagens fossem mais do que mera hipótese?

A prudência me levou a tratar os textos bíblicos que mencionei no artigo anterior como indícios, mas os que apresentarei aqui serão tratados como evidências. Nada do que aqui disser confrontará as doutrinas cardinais da fé cristã. Portanto, podem apagar a fogueira inquisitória. Não vai ser desta vez que serei condenado como herege. Então, que tal dar vasão à imaginação uma vez mais?

Para que consideremos a possibilidade de viajar no tempo, teremos que considerar que o futuro já exista e que o passado não deixou de ser. Passado, presente e futuro seriam facetas de uma mesma dimensão, a temporal, assim como altura, largura e profundida são as três dimensões espaciais. Foi Einstein que propôs que o tempo seria a quarta dimensão, desafiando e revolucionando a noção defendida pela física desde Newton. Muito antes físico alemão, Santo Agostinho percebeu a importância do tempo. Dentre suas assertivas, o bispo de Hipona diz que “o mundo não foi feito no tempo, mas sim com o tempo”, atribuindo ao tempo existência real. Apesar de toda sua intuição sobre o tema, Agostinho admite que se ninguém lhe perguntasse sobre o que é o tempo, ele saberia, mas se tivesse que explicá-lo, não saberia fazê-lo.[1]

Eclesiastes não é o único livro a tratar do tempo e de sua fugacidade (Ecl.3). Ouso afirmar que as Escrituras falem muito mais sobre o tema do que geralmente tem sido percebido. Sugiro que recorramos ao mais enigmático livro das Escrituras em busca de indícios da possibilidade de se viajar na malha temporal, tanto para frente, quanto para trás.

Segundo o testemunho de João, apesar de confinado a uma ilha no meio do Mediterrâneo, ele se achou em espírito no dia do Senhor, onde recebeu a ordem para que escrevesse sobre coisas que já haviam se passado, sobre outras que estavam ocorrendo naquele momento e ainda, sobre as que aconteceriam sem seguida.[2] De acordo com algumas traduções, João teria dito: “Eu fui arrebatado em espírito no dia do Senhor”[3]. Sem compreender o poder de Deus para transportar-nos pelo tempo e pelo espaço, muitos intérpretes dizem que a expressão “dia do Senhor” nada mais é do que uma alusão ao domingo, dia em que os crentes primitivos costumavam se reunir para adorar. Todavia, a expressão usada por João é kuriakos hēmera, cujo sentido é “Dia pertencente ao Senhor”. Expressão correlata é encontrada em I Tes. 5:2, I Co. 5:5, At.2:20, I Co. 1:8, II Co. 1:14, II Pe. 3:10. A diferença é que nestas passagens lê-se hēmera kyrius. O sentido é exatamente o mesmo. Enquanto hēmera kyriuspoderia ser traduzido como“Dia do Imperador”, kuriakoshēmera seria traduzido como “Dia Imperial”. Porém, todas se referem ao Dia em que Cristo Se manifestará em glória e juízo sobre o mundo. Considerando que este dia esteja no futuro, logo, concluímos que João foi um viajante do tempo. Não sei por que da dificuldade de se entender isso. Ora, se Deus pôde arrebatar a Filipe, transportando-o de um lugar para o outro num piscar de olhos, por que não poderia igualmente arrebatar a João ou a quem quer que fosse de um tempo para o outro? Tempo e espaço são dimensões complementares, dois lados da mesma moeda. Se há a possibilidade de transporte espacial instantâneo (teletransporte), logo, também há devemos considerar a possibilidade de transporte temporal. É evidente que aqui se trata de uma viagem para o futuro. De certo modo, todos estamos viajando na mesma direção, seguindo a seta do passado para o futuro. Porém, João deu um salto do seu presente para o último dia da história. Todavia, ele não ficou por lá, mas voltou para o seu próprio tempo, fazendo o caminho inverso, isto é, uma viagem do futuro para o passado.

Alguns poderão argumentar que tal viagem tenha sido feita no espírito e não corporalmente. A palavra grega “pneuma” traduzida por espírito poderia ser identificada como “coração” ou “consciência”. Esta instância do ser é atemporal, conforme defende a psicanálise. Tal verdade ecoa nas páginas de Eclesiastes, onde lemos: “Tudo fez formoso em seu tempo. Também pôs a eternidade no coração dos homens” (Ec.3:11a). Em outras palavras, a eternidade habita a subjetividade. Penso ser perda de tempo e de recursos tentar construir uma máquina capaz de viajar no tempo. A ciência ainda se dará conta de que a tal máquina do tempo já existe. É item de fábrica com o qual já nascemos: Nossa consciência. Admitidamente, o maior mistério com o qual a ciência tem tido que lidar. Tudo o que sabemos sobre ela é uma mísera pontinha do iceberg.

Minha conclusão é que ser transportado “em espírito” para outro tempo não diminui em nada a importância do fenômeno. Não foi apenas um êxtase, um transe hipnótico ou coisa parecida.

Experiência semelhante é citada por Paulo:

“Conheço um homem em Cristo que há catorze anos (se no corpo, não sei, se fora do corpo, não sei; Deus o sabe) foi arrebatado ao terceiro céu. E sei que o tal homem (se no corpo, se fora do corpo, não sei; Deus o sabe) foi arrebatado ao paraíso; e ouviu palavras inefáveis, que ao homem não é lícito falar.” 2 Coríntios 12:2-4

Alguns teólogos acreditam que o homem de quem Paulo fala seria ele mesmo. Segundo o relato, este homem teria sido arrebatado catorze anos antes. Portanto, foi uma experiência histórica, passível de ser datada. O que Paulo não soube dizer era se teria sido uma experiência corpórea ou extracorpórea. Possivelmente, a sensação era de que todo o seu ser teria sido transportado e não apenas o seu espírito. Para onde ele teria sido transportado? Paulo fala de terceiro céu e o identifica com o paraíso. Logo, a primeira impressão que temos é que foi um transporte espacial, isto é, de um lugar (terra) para outro (céu).

O que seria o terceiro céu? Muitos intérpretes afirmam que o primeiro céu seria a atmosfera terrestre, o segundo céu seria o espaço sideral, e o terceiro céu seria o lugar do trono de Deus.

Sugiro uma leitura alternativa. Em vez de designações espaciais, designações temporais. Em vez de lugares, tempos.

Portanto, o terceiro céu não seria um céu acima dos dois primeiros céus, mas um tempo à frente desses. Tomo por base da minha interpretação um texto muito conhecido da segunda epístola de Pedro, segundo o qual o primeiro céu teria existido desde a criação até o dilúvio (2 Pe.3:5-6). Mais adiante, Pedro se refere aos céus atuais, que identificamos como o segundo céu: “Mas os céus e a terra de agora, pela mesma palavra, têm sido guardados para o fogo...” (2 Pe.3:7-8). Por fim, ele fala do terceiro céu ao referir-se aos“novos céus e uma nova terra, nos quais habita a justiça” (2 Pe.3:13). É digno de nota que Pedro conjuga o verbo “habitar” no presente, como se o que nos aguarda no futuro já fosse real hoje. O futuro está presente entre nós. Portanto, o primeiro céu representa a era passada. O segundo céu, a era presente. E o terceiro céu, a era futura. Logo, concluímos que Paulo fora arrebatado ao futuro. O único mistério que persiste é se foi uma experiência corpórea ou extracorpórea.

Quanto ao “paraíso”, creio tratar-se do mesmo fenômeno. O paraíso não é um lugar, mas um tempo. Não podemos apontá-lo num mapa. Ele é encontrado nas páginas das Escrituras no início da criação, e reaparece no fim, não mais como o lugar bucólico original, mas como uma cidade. Para ser arrebatado ao paraíso, teríamos que viajar no tempo, fosse para o passado, no início de tudo, ou para o futuro, quando na consumação da história.

Foi para este mesmo paraíso que Jesus prometeu levar o ladrão penitente. “Hoje mesmo”, garantiu o Salvador, “estarás comigo no paraíso”. A exemplo do que aconteceu com ele, todos quantos deixamos esta dimensão temporal, somos remetidos imediatamente ao paraíso, isto é, ao tempo em que todas as coisas são cumpridas. [4]

Retornando para o Apocalipse, logo no início do livro, encontramos Jesus Se apresentando a João como “aquele que era, que é e que há de vir”[5], o Alfa e o Ômega, que engloba em Si mesmo o passado, o presente e o futuro.   Nesta passagem, Jesus Se apresenta a João como a primeira e a última letra do alfabeto grego. Ser o Alfa e o Ômega é o mesmo que dizer que o tempo está contido n’Ele. Ele não apenas engloba em Si mesmo todas as coisas, mas também todos os tempos. Ele é o princípio e o fim. Se entrássemos numa máquina do tempo, e retrocedêssemos até o início de tudo, lá O encontraríamos. Se avançássemos até o momento derradeiro, lá igualmente O encontraríamos. Toda a História está contida n’Aquele que é o Pai da Eternidade. Toda a existência está inserida n’Ele. Como disse Paulo em seu famoso discurso aos atenienses: “Pois nele vivemos, e nos movemos, e existimos” (At.17:28). Nada há fora d’Ele. “Pois nele foram criadas todas as coisas que há nos céus e na terra, visíveis e invisíveis, sejam tronos, sejam dominações, sejam principados, sejam potestades; tudo foi criado por ele e para ele. Ele é antes de todas as coisas, e todas as coisas subsistem por ele (...) Pois foi do agrado do Pai que toda a plenitude nele habitasse, e que, havendo por ele feito a paz pelo sangue da sua cruz, por meio dele reconciliasse consigo mesmo todas as coisas, tanto as que estão na terra como as que estão nos céus” (Cl.1:16-17,19). Trata-se da plenitude da criação habitando em Cristo. Céu e terra convergiram e estão contidos n’Ele. Não há existência à parte d’Ele. E não só a plenitude da criação está contida n’Ele, como também “nele habita corporalmente toda a plenitude da divindade” (Cl.2:9). Portanto, não há Deus fora de Cristo. A Divindade inteira está n’Ele, em quem tempo, espaço e eternidade coexistem. Ele é o habitat da Divindade e da Criação como um todo. Ele é o point cósmico, onde tudo o que existe converge.

Ao apresentar-Se como Aquele “que era, que é e que há de vir”, Cristo Se identifica como Iavé, o mesmo Deus que aparecera para Moisés na sarça ardente. No dizer do escritor de Hebreus, “Jesus Cristo é o mesmo ontem, hoje e para sempre”(Hb.13:8). Repare num detalhe intrigante: Para Ele, o ontem não passou. Se houvesse passado, o escritor teria dito que Ele era o mesmo ontem, e não que Ele é o mesmo ontem. O verbo “ser” quando aplicado à Sua pessoa é sempre conjugado no presente, mesmo quando se refere ao passado e ao futuro. Ele não será para sempre. Ele é para sempre.

Antes da encarnação, porém, Deus revelou-Se a Moisés como “eu serei o que serei”. Somente em Cristo o futuro se torna presente. Podemos dizer que, em certo sentido, Deus Se atualiza n’Ele. O escritor sagrado afirma que fomos visitados pelos poderes do mundo vindouro (Hb.6:5). Portanto, a ordem foi subvertida. O futuro nos visitou, tal qual uma agulha que volta para reforçar um ponto já dado, depois de estar no fim da costura. Em Cristo, o “eu serei o que serei” se torna no “Eu sou”, repetido em sete poderosas sentenças: Eu sou... o caminho a verdade e a vida, a luz do mundo, o pão da vida, a ressurreição e a vida, o bom pastor, a porta, a Videira Verdadeira. E em Apocalipse, o Alfa e o Ômega e a estrela da manhã.

De acordo com o rabino Nilton Bonder, em seu livro “Sobre Deus e o Sempre”, “qualquer pessoa familiarizada com a língua hebraica sabe que YHWH [6]está associado à noção de tempo, uma vez que contém o radical do verbo existir ou do verbo SER. Como a língua hebraica não declina o verbo “ser” no presente, YHWH parece ser uma mistura dos verbos “ele será, ele foi e ele é” somado ao gerúndio do verbo SER. Já outros preferem a leitura do Tetragrama como uma representação do tempo presente (HWH) sendo precedido pela partícula Y, que lhe dá um sentido futuro. Ou seja: Eu sou aquele que empurra o Presente na direção do Futuro. Nessa leitura, Deus se define como a própria força motriz do tempo (...) Em resumo, o Tetragrama seria um código do tempo.”[7]

Quando Moisés pergunta pelo nome d’Aquele que lhe aparecera no deserto no arbusto ardente, ouve uma inusitada e enigmática resposta: Ehié Asher Ehié, que significa literalmente “Serei o que serei”.[8]

Dá-se a impressão de que a ordem temporal representada pelo sistema causa-efeito é subvertida. Portanto, não é o passado que determina o presente, e sim, o futuro. Sartre parece ter acertado de raspão ao afirmar que  futuro.”

Nas palavras de Bonder, “o fazer, o existir de Deus não pertence ao sistema de causa-consequência, o que Deus faz está para além da causalidade, o que causa já é consequência e a consequência já é causa. Não há separação, ou distinção, entre intenção e resultado. O resultado já é a intenção e a intenção já é o resultado.”[9]

É esta mesma lógica quântica que encontramos em outro trecho enigmático do livro de Apocalipse:

“Aquele que tem ouvidos ouça:Se alguém há de ir para o cativeiro, para o cativeiro irá. Se alguém há de ser morto à espada, à espada haverá de ser morto. Aqui estão a perseverança e a fidelidade dos santos.” Apocalipse 13:9-10[10]

De acordo com R.N.Champlin, em sua obra “O Novo Testamento interpretado versículo por versículo”, “o estilo epigramático da declaração deixou perplexos aos escribas (...) A ausência de um verbo com a primeira cláusula impeliu vários copistas a procurarem melhorar o texto...”  Há, pelo menos, doze variantes deste trecho do livro das Revelações. “Talvez sob a influência de declarações como Mateus 26:52, copistas modificaram, de vários modos, a difícil construção grega”. Por isso, algumas traduções em português, como a Almeida Corrigida e Revisada trazem: “se alguém leva em cativeiro, em cativeiro irá; se alguém matar à espada, necessário é que à espada seja morto”. O objetivo dos tradutores foi o melhor possível: tornar o texto mais compreensível. Considerando esta a melhor tradução, subentende-se que a intenção do escritor era advertir aos leitores a que fossem responsáveis por suas ações, pois as mesmas teriam consequências em suas vidas. Semeou, vai colher. Matou à espada, à espada será morto. Todavia, não é isso que o texto intenta dizer.

Trata-se, antes, do uso de uma expressão idiomática do hebraico: “se alguém é morto à espada, que seja morto à espada.”

Já que não faz muito sentido dentro da lógica de causa-efeito, copistas fizeram acréscimos, de modo que o texto dissesse o que ele, de fato, não pretende dizer. Sem dúvida, faz mais sentido dizer “se alguém deve ser morto à espada, à espada morrerá”. Ou ainda, “se alguém matar à espada, à espada deve morrer.” Mas em vez disso, ele diz: “Se alguém é morto à espada, que seja morto à espada.” Não se trata, portanto, de uma previsão ou advertência, mas de uma antecipação. Mais uma vez, o futuro determina o presente, não o passado.

Há algo lá na frente que nos atrai como um ímã. Se retrocedermos ao princípio de tudo, encontraremos Cristo, o Alfa, exercendo poder impulsionador, empurrando todas as coisas para frente. Se fôssemos remetidos para o futuro, lá encontraríamos Cristo, o Ômega, exercendo Seu poder atrator. É por isso que o fluxo temporal segue a direção passado-futuro. Não se pode nadar contra a correnteza. O ponto Alfa, início de tudo, impele, empurra para frente. Enquanto o ponto Ômega, que é o fim objetivo de tudo, atrai, puxa para frente.

Algo semelhante ocorre em outro texto deveras enigmático extraído do Antigo Testamento, onde Deus declara a Moisés: “Terei misericórdia de quem eu tiver misericórdia, e me compadecerei de quem me compadecer.”Geralmente se acredita que Deus estivesse apenas declarando que usaria de misericórdia com quem Ele quisesse. Porém, o fato é que, no hebraico, esse é um dos textos mais misteriosos das Escrituras. Com efeito, sua tradução ao pé da letra diz: “Trarei graça o que houver trago graça e compadecerei o que houver compadecido”. Em outras palavras, farei o que já fora feito. Era como se Deus, propositadamente, misturasse os tempos verbais futuro e passado, convidando Moisés a entrar numa dimensão atemporal, onde não houvesse distinção entre o que se foi, e o que virá a ser.

Continua...




[1]Confissões – Agostinho, Livro XI
[2]Apocalipse 1:19
[3]Apocalipse 1:9
[4]Leia nosso artigo “Kairosfera: para onde vamos ao morrer”: http://www.hermesfernandes.com/2013/08/kairosfera-pra-onde-vamos-ao-morrer.html
[5]Apocalipse 1:8
[6]YHWH – Tetragrama usado pelos judeus para referir-se a Deus e geralmente pronunciado como Iavé.
[7]BONDER, Nilton – Sobre Deus e o Sempre, pág.17
[8]Geralmente e erroneamente traduzido como “Eu sou o que sou”.
[9]Ibid id – pág. 93
[10]ει τις αιχμαλωσιαν συναγει εις αιχμαλωσιαν υπαγει ει τις εν μαχαιρα αποκτενει δει αυτον εν μαχαιρα αποκτανθηναι ωδε εστιν η υπομονη και η πιστις των αγιων/ei tissynagōaichmalōsiahypagōeisaichmalōsiaei tisapokteinōenmachairadeiapokteinōenmachairahōdeestihypomonēkaipistishagios

Einstein, a Cruz e as viagens no tempo

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Por Hermes C. Fernandes

Devemos supor que o futuro já tenha sido escrito? Não! Muito mais do que isso. O futuro já é real. No universo descrito por Einstein através de sua Teoria da Relatividade, tudo está escrito. Nossas escolhas já estão escritas no tecido da realidade. Isso parece concordar com a declaração do salmista:

Os teus olhos viram a minha substância ainda informe, e no teu livro foram escritos os dias, sim, todos os dias que foram ordenados para mim, quando ainda não havia nem um deles.E quão preciosos me são, ó Deus, os teus pensamentos! Quão grande é a soma deles!” Salmos 139:16-17

O que os antigos se referiam como “livro”, talvez hoje pudesse melhor ser compreendido como um gigantesco computador cósmico.  Neste “computador” tudo está arquivado; passado, presente e futuro são arquivos igualmente acessíveis. Tudo o que aconteceu desde o início da história até o seu fim existe ao mesmo tempo. Esse “computador” é o próprio Universo.  

O livro de Deus a que se refere o salmista reaparece nas páginas do Apocalipse. Arrebatado à sala do trono do Todo-Poderoso, João descreve a cena em que vê “na mão direita do que estava no trono um livro escrito por dentro e por fora, selado com sete selos” (v.1). João deve ter se perguntado que livro era aquele. Por que estava lacrado? Por que era escrito por dentro e por fora? Aquele era o livro da existência.  O registro de toda a história, englobando o papel de cada elemento do Universo. Além dos fatos em si, nele também se encontra a interação entre eles e o propósito divino por trás deles. Ali estava o projeto de Deus, pronto para ser desencadeado. Naquele rolo estava escrito a História do Cosmos, desde o momento singular, até o seu desfecho. Criação, Queda, Redenção, Restauração e Juízo, tudo estava ali. A História de cada partícula, de cada ser vivo, de cada família, de cada nação. É claro que esse livro não deve ser entendido literalmente. Ele representa a vasta soma dos pensamentos de Deus relativos à Sua Obra. Paulo ficou igualmente estupefato diante desta realidade: “Ó profundidade das riquezas, tanto da sabedoria como da ciência de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis os seus caminhos! Quem compreendeu a mente do Senhor? Ou quem foi seu conselheiro? Ou quem lhe deu primeiro a ele, para que seja recompensado? Porque dele e por ele e para ele são todas as coisas. Glória, pois, a ele eternamente. Amém” (Rm.11:33-36).

O fato de o livro estar selado aponta para a inescrutabilidade dos decretos divinos. Estar escrito por dentro e por fora indica que o propósito de Deus abarca a criação como um todo, tanto a visível quanto a invisível, a material e a espiritual, a macro e a micro. Ali a mecânica quântica e a Teoria da Relatividade se encaixam perfeitamente.  Nenhuma dimensão da existência está fora do escopo do projeto de Deus.

João prossegue em seu relato: “Vi também um anjo forte, bradando com grande voz: Quem é digno de abrir o livro, e de lhe romper os selos? E ninguém no céu, nem na terra, nem debaixo da terra, podia abrir o livro, nem olhar para ele. E eu chorava muito, porque ninguém fora achado digno de abrir o livro, nem de o ler, nem de olhar para ele” (vv.2-4). Não havia ninguém capaz de dar o pontapé inicial, o start para que o projeto de Deus fosse deflagrado. Pra que a trama começasse e fosse bem sucedida, alguém teria que romper os selos, os lacres do misterioso livro. Mas teria que ser alguém digno disso. João se desespera enquanto assiste apreensivo. “Todavia um dos anciãos me disse: Não chores! Olha, o Leão da Tribo de Judá, a raiz de Davi, venceu para abrir o livro e os seus sete selos” (v.5). Alguém que emerge de dentro daquele pergaminho, que apesar de viver para além do tempo e do espaço, emerge de dentro da história, apresentando-se no cenário como o personagem principal da trama, como aquele que venceu para abrir o livro. Esse personagem é apresentado como que se identificando com duas etapas distintas da História, mas que estão intimamente conectadas. Ele é o Leão da Tribo de Judá, e o Descendente prometido por Deus a Davi, para ocupar seu trono. Ele também é a semente da mulher, o Descendente de Abraão, o Messias de Israel, o Cristo de Deus.

Ele existe dentro e fora da História. N’Ele se conecta o cronos e o kairós, o tempo e a eternidade. Ele é o ponto de convergência de todas as dimensões que possam existir. Ele é o diapasão pelo qual as cordas encontram sua fina sintonia.

“Então vi, no meio do trono e dos quatro seres viventes, e entre os anciãos, em pé, um Cordeiro, como havendo sido morto, e tinha sete chifres e sete olhos, que são os sete espíritos de Deus enviados por toda a terra. E veio e tomou o livro da mão direita do que estava assentado no trono” (vv.6-7).

Cristo surge como o centro gravitacional de tudo. Ele está no meio do trono e tudo O orbita. O Cordeiro visto por João se apresenta “como havendo sido morto”. Portanto, trata-se do Cristo Crucificado, aquele de quem Paulo diz: “Pois nada me propus saber entre vós, senão a Jesus Cristo, e este crucificado” (1Co.2:2). O sacrifício de Cristo foi o detonador da História. A História não começa com a criação de todas as coisas, e sim com o sacrifício do próprio Criador. O Cosmos surge a partir da Cruz.

Os sete chifres do Cordeiro representam Sua Onipotência, enquanto Seus sete olhos representam Sua Onisciência e Onipresença. Portanto, o Cordeiro é o próprio Deus, pois compartilha de todos os atributos incomunicáveis da Divindade.

João prossegue: “Logo que tomou o livro, os quatro seres viventes e os vinte e quatro anciãos prostraram-se diante do Cordeiro, tendo todos eles uma harpa e taças de ouro cheias de incenso, que são as orações dos santos” (v.8). Ora, como poderiam ser as orações dos santos, se tudo isso ocorre antes da abertura do livro, e, portanto, antes da fundação do mundo? Mais uma vez Davi nos responde: “Sem que haja uma palavra na minha língua, ó Senhor, tudo conheces” (Sl.139:4). Sua presciência permite que todas as orações dos santos estejam diante d’Ele, mesmo antes de terem sido feitas. Todos os ingredientes estavam postos diante do Trono. Louvores, orações, e acima de tudo, Alguém digno de abrir o livro, e iniciar o processo histórico, que culminaria com a glória de Deus revelada à Criação.

Imagine um livro em forma de um rolo de pergaminho. Ele não é encadernado como os livros de hoje. Trata-se de uma grande tira de pergaminho, enrolada pelas duas pontas. Quando seus selos são rompidos, ele começa a desenrolar-se por igual. O lado esquerdo pode representar as coisas passadas, e o lado direito, as futuras. A Cruz entra no meio, e faz com que o rolo se abra para os dois lados. Tudo acontece na Cruz, com a morte do Cordeiro. A História começa na Cruz, mas já surge contendo um passado e um futuro. No Kairós, a Cruz é o ponto inicial. Mas no Cronos, a Cruz ocorre na plenitude dos tempos.

Deus cria o mundo a partir da Cruz. Mas o cria já com um passado e um futuro. Ainda que os cientistas tenham razão em dizer que o Universo tem 15 bilhões de anos, aos olhos de Deus, esse universo veio a existência a partir da Cruz, como que instantaneamente.

Ali o rolo se abriu, para esquerda e para direita. Nada existia antes da Cruz, pelo menos, não da perspectiva divina. Há quem defenda a hipótese de que Deus possa ter criado as coisas com aparência de certa idade. Mas tudo não passaria de “aparência”. Portanto, a Terra “aparenta” ter 4,5 bilhões anos, mas seria, de fato, muito mais jovem (aproximadamente 6 mil anos, defendem). Os que advogam tal hipótese, argumentam que Adão fora criado já adulto. Quem quer que o encontrasse, lhe atribuiria certa idade, ainda que ele houvesse sido criado um dia antes. Pode parecer um argumento plausível, pelo menos do ponto de vista teológico. Entretanto, não me parece ser este o modus operandi de Deus.

Por que Jesus não surgiu no mundo já em idade adulta? Por que Ele teve que ser gerado no ventre de uma mulher, e experimentado cada etapa do desenvolvimento humano? Se esse fosse o modus operandi de Deus, haveríamos de esperar que o mesmo se sucedesse com o advento de Jesus. Em vez de acreditar que Deus criou um Universo aparentemente velho, prefiro acreditar que Deus criou um Universo já com uma História pregressa, e um futuro glorioso. Não creio que Deus faria alguma coisa com a intenção de criar uma ilusão de ótica.

Portanto, concluímos que a Cruz é o início de tudo. Nada existia antes dela! Sem que o Cordeiro fosse morte antes da fundação do mundo[1], não haveria nada que cobrisse a nudez do primeiro casal. Nossa culpa foi expiada mesmo antes que houvéssemos pecado.

Como já vimos, o livro em forma de pergaminho visto por João é o universo. Retomando a analogia do computador, o universo é o hardware, enquanto que a Mente de Cristo é o software.  As estrelas equivalem aos neurônios da mente de Cristo. O universo é o corpo cósmico de Cristo. Ao encarnar, o Logos Divino assumiu nossa humanidade, e, ao ascender ao céu, assumiu o cosmos inteiro.

De acordo com a teoria da relatividade de Einstein, o tempo é a quarta dimensão de um espaço tridimensional que é encurvado pela gravidade. O espaço curvo de Einstein lembra o livro da existência em Apocalipse. É também neste mesmo livro que o universo é apresentado “como um livro que se enrola” (Ap.6:14). Mais de setecentos anos antes, Isaías já havia previsto que “os céus se enrolarão como um livro”(Is.34:4).

O que tudo isso tem a ver com viagem no tempo? Os físicos só admitem a possibilidade de viagens no tempo, ainda que hipoteticamente, por causa da teoria da relatividade de Einstein. Segundo esta teoria, o espaço é curvo e, assim, o nosso universo é dobrado várias vezes sobre si mesmo, e que pode ser conectado a vários outros universos paralelos através de “túneis de tempo” produzidos por buracos negros e buracos de minhoca (wormholes).[2]Tal teoria não apenas possibilitaria viagens no tempo, mas também viagens a longas distâncias no espaço. Assim, uma distância que deveria ser percorrida em milhões de anos na velocidade da luz, seria percorrida em segundos por esses atalhos cósmicos.

Imagine um rolo de papel. Se desenrolado, uma formiga precisaria de uma hora caminhando para alcançar de uma a outra extremidade. Porém, se o mantivermos enrolado e com um lápis fizermos um furo que o penetre até o outro lado, esta mesma formiga poderia alcançá-lo em segundos.

Não existe movimento espacial sem movimento temporal. Isto é, no espaço-tempo não é possível a um corpo se mover nas dimensões espaciais sem se deslocar no tempo. Mas mesmo quando não nos movemos espacialmente, estamos nos movendo na dimensão temporal (no tempo). Mesmo sentado em sua cadeira enquanto lê este artigo, você está se movendo no tempo, para o futuro. Este movimento é tão válido na geometria do espaço-tempo quanto os que estamos habituados a ver em nosso dia a dia. Portanto, no espaço-tempo estamos sempre em movimento, e a nossa ideia de estar parado significa apenas que encontramos uma forma de não nos deslocarmos nas direções espaciais, mas apenas no tempo.

A maneira como encadernamos nossos cadernos escolares também nos oferece uma boa analogia para compreendermos a teoria da relatividade. Apesar das folhas serem soltas e as páginas sequenciais, elas são presas por uma espécie de espiral. Este arame espiralado perpassa todas as folhas várias vezes através dos buracos que as pontilham de cima a baixo.

Seguindo a analogia, cada página da história poderia ser revisitada inúmeras vezes por alguém advindo de uma dimensão atemporal. Ninguém menos que o próprio Deus seria este “Alguém”. Que Ele dispõe de tal poder, ninguém ousa duvidar. A questão é se Ele já ofereceu carona a alguém. Tenho razões para crer que sim.

Como já disse em outro artigo, o profeta Elias poderia ter sido uma destas. De acordo com o relato bíblico, um redemoinho o teria arrebatado.  Repare nos detalhes:
“E sucedeu que, indo eles andando e falando, eis que um carro de fogo, com cavalos de fogo, os separou um do outro; e Elias subiu ao céu num redemoinho. O que vendo Eliseu, clamou: Meu pai, meu pai, carros de Israel, e seus cavaleiros! E nunca mais o viu; e, pegando as suas vestes, rasgou-as em duas partes. Também levantou a capa de Elias, que dele caíra; e, voltando-se, parou à margem do Jordão.” 2 Reis 2:11-13
Não foi o carro de fogo que o tomou, mas um redemoinho. O carro de fogo apenas o separou de Eliseu. O redemoinho poderia ter sido um buraco de minhoca em forma espiralada, uma dobra aberta no tempo. Outro detalhe interessante é que as vestes de Elias ficaram para trás. Isso nos remete a uma das cenas de viagem no tempo mais marcantes do cinema, em que Arnold Schwarzenegger aparece completamente nu, vindo do futuro. De onde os roteiristas de Hollywood teriam tirado a conclusão de que não seria possível transportar um corpo pelo tempo juntamente com sua roupa?

Outro episódio misterioso das Escrituras é o do homem que aparece inusitadamente nas páginas de Marcos completamente nu, usando um lençol para cobrir-se, enquanto Jesus é preso pelos soldados do sinédrio.
“E um certo jovem o seguia, envolto em um lençol sobre o corpo nu. E lançaram-lhe a mão. Mas ele, largando o lençol, fugiu nu.” Marcos 14:51-51 
Quem era? De onde viera? Por que surge e desaparece misteriosamente? Por que estaria nu numa hora daquelas? Seria um viajante do tempo? Possivelmente. Não vejo outra explicação para o fato de estar nu, senão que tenha tido viajado no tempo com a intenção de assistir, ou quem sabe, tentar impedir a prisão de Jesus.

P.S.: Recebi um comentário neste artigo que me achou a atenção, e que abriu ainda mais o leque da questão nele abordada. Ei-lo: "Em Gênesis 1:5 lemos: "...E foi a tarde e a manhã, o dia primeiro". A expressão é mencionada seis vezes no capítulo 1, sempre se referindo aos dias da criação. O interessante é que pela lógica do cronos, ou cronologia, a expressão deveria ser: "e foi a manhã e a tarde." Mas na lógica do kairós, ou da kairosfera, o início se dá à tarde, pois foi à tarde, mas precisamente às quinze horas que Jesus foi crucificado. E a expressão termina com "a manhã", pois foi pela manhã que Ele ressuscitou, o que, para o nosso tempo cronológico durou três dias. Mas na criação, Deus já antevia a morte e ressurreição de Jesus."

Outros artigos meus sobre o tema aqui e aqui.



[1] 1 Pe.1:19-20 - “...mas com o precioso sangue de Cristo, como de um cordeiro sem defeito e sem mancha, o que, na verdade, foi conhecido ainda antes da fundação do mundo, mas manifesto nestes últimos tempos por amor de vós”Ap.13:8b - “...O cordeiro que foi morto desde a fundação do mundo”.
[2]A Ponte de Einstein-Rosen é um conceito teórico que vislumbra a hipótese da existência de buracos negros ou buracos de minhoca.


McFly: Vocês não estão preparados para isso! Mas seus filhos adorarão!

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Por Hermes C. Fernandes

Chegou o tão esperado 21/10/2015, dia em que Marty McFly e o Dr. Emmett Brown desembarcaram no futuro na trilogia "De volta para o futuro" dirigida por ninguém menos que Steven Spielberg. Como parte da celebração que envolveu cinéfilos do mundo inteiro, os atores Michael J. Fox e Christopher Lloyd estiveram num dos mais populares talk shows dos EUA, apresentado por Jimmy Kimmel, onde chegaram à bordo do DeLorean como se houvessem vindo de 1985. Interpretando seus personagens, os dois foram entrevistados pelo apresentador, demonstrando estarem desapontados com o que encontraram no futuro. Nada de carros voadores, nem hoverboards. O único aparato tecnológico que os impressionou foi o smartphone que, diga-se de passagem, não foi previsto no filme. 

Assistindo à aparição apoteótica dos protagonistas no Jimmy Kimmel Live, pus-me a imaginar como seria se Pedro e Paulo, ambos apóstolos de Jesus, viajassem no tempo e viessem nos visitar. O que pensariam da igreja atual? Será que se escandalizariam com algo? Ficariam contentes ou desapontados? Não me refiro aos avanços tecnológicos, mas ao avanço na compreensão da verdade e à sua aplicação nas demandas do mundo atual. 

Não é segredo para ninguém o quanto sou fã desta trilogia.  Para mim, como músico e guitarrista, o ponto alto do filme se dá quando Marty toca o clássico "Johnny B. Goode" no baile da escola, brindando o público com um solo de guitarra no final da apresentação. Todos ficaram atônitos, assustados com sua performance. Percebendo a reação do público, ele diz: "Acho que vocês não estão preparados para isso. Mas seus filhos vão adorar!" Estas duas frases me remetem ao que Jesus disse aos Seus discípulos: "Tenho ainda muito que lhes dizer, mas vocês não o podem suportar agora" (João 16:12). Pergunto: será que, dois mil anos depois, já estamos preparados? Tenho minhas dúvidas...

Cerca de trinta anos depois que Cristo foi assunto ao céu, o escritor de Hebreus constatou que o despreparo persistia. Repare no que ele diz: "Quanto a isso, temos muito que dizer, coisas difíceis de explicar, porque vocês se tornaram lentos para aprender. De fato, embora a esta altura já devessem ser mestres, vocês precisam de alguém que lhes ensine novamente os princípios elementares da palavra de Deus. Estão precisando de leite, e não de alimento sólido"(Hebreus 5:11-12)! Imagine, uma das epístolas mais densas do Novo Testamento é chamada por seu próprio autor de "leite". O que seria, então, alimento sólido?

Para quais assuntos ainda não estamos preparados? O que nos impede de avançar em nossa compreensão? Talvez o fato de estarmos tão apegados aos "princípios elementares", ao beabá do evangelho. O autor sagrado propõe que seus leitores deixem "os ensinos elementares a respeito de Cristo", para que possam avançar "para a maturidade" (Hebreus 6:1).

De onde vem o fundamentalismo que tão mal tem feito a igreja dos últimos tempos? Não vem justamente daí, do apego aos princípios elementares, aos fundamentos da fé? Será que não nos demos conta de que o mundo mudou? Que as demandas atuais não são as mesmas de quinhentos ou de dois mil anos atrás? Insistimos em dar respostas a perguntas que ninguém mais faz. Combatemos as indulgências que deixaram de ser cobradas há séculos. Admoestamos aos escravos para que obedeçam a seus senhores, esquecendo-nos de que a escravidão já foi abolida. Proibimos as mulheres de falar na igreja como se ainda nos reuníssemos em sinagogas primitivas. 

Dentre os assuntos para os quais estamos tão despreparados quanto estavam os discípulos de Jesus está a sexualidade. Ao abordar a questão envolvendo os eunucos, Jesus disse: "Nem todos têm condições de aceitar esta palavra" (Mateus 19:11). Triste constatar que haja tanto preconceito no seio da igreja hodierna, não só para com indivíduos cuja sexualidade destoe da heteronormatividade, mas também para com as mulheres, deficientes, negros, índios, etc. Dois mil anos se passaram e ainda discutimos o papel da mulher no contexto ministerial.

Creio piamente que ainda haja muito conhecimento para ser adquirido, porém, precisamos percorrer uma longa jornada até que estejamos prontos para lidar com seus desdobramentos e implicações. 

Minha esperança é de que nossos filhos hão de compreender com relativa facilidade o que hoje ignoramos por causa de nossa inabilidade em digerir certos conceitos. 

Por isso, junto-me aos milhões de fãs da trilogia para dar boas vindas ao futuro. O futuro já chegou e não há nada que possa impedir que as coisas evoluam.

Abaixo, o trecho do filme em que McFly quase arrebenta os tímpanos da plateia com seu solo psicodélico e a aparição apoteótica dos atores da trilogia no talk show americano. 




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