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ALMA CANHOTA - O mundo não foi feito sob medida para você

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Por Hermes C. Fernandes

Por muito tempo, eles foram perseguidos e condenados à morte na fogueira da Santa Inquisição. Eram considerados verdadeiras aberrações, abominações responsáveis por atrair a ira divina. Quem pensa que estou me referindo aos homossexuais ou às bruxas está redondamente equivocado. Refiro-me aos canhotos. Isso mesmo. 

Quando me perguntam se sou destro ou canhoto, costumo responder que sou ambidestro. Escrevo com as duas mãos. Obviamente que não com a mesma destreza. Em algumas tarefas, sou melhor com a esquerda do que com a direita. Por exemplo: meu soco é sempre com a esquerda. Não tenho muita força com a direita. Quando aponto para algo, uso o olho esquerdo. Seguro o garfo com a direita, mas para a sobremesa, seguro a colher com a esquerda. Dá pra entender uma coisa dessas? Toco violão como um destro, mas toco piano como um canhoto. Desconfio que originalmente eu fosse canhoto, mas minha mãe me forçou a ser destro. Claro que não fez isso por mal. Certamente, quis me poupar por perceber que o mundo não é feito para os canhotos. 

O mundo sempre nos impõe seus padrões. Qualquer coisa que fuja a eles é considerado anormal. Apesar de socialmente destro, reconheço-me como uma alma canhota. Aspiro coisas que o mundo é incapaz de suprir. Tenho sonhos que extrapolam as bordas da realidade que me circunda. 

Desafortunadamente, a maior parte das pessoas se deixa adestrar (verbo que significa literalmente “tornar-se forçosamente destro”). E assim, abrem mão de sua essência, tornando-se naquilo que a máquina social as programou para ser. Vivem como manda o figurino. E assim, deixam de viver algo extraordinário, sacrificando seus sonhos no altar da conveniência. Sorte do mundo que haja rebeldes entre nós. 

Pessoas que prezam a autenticidade e se dispõem a correr o risco que for para que sua biografia seja motivo de inspiração a outros. Só há uma maneira de se copiar alguém absolutamente autêntico: sendo igualmente autêntico. É um tributo que se presta aos tais. 

Por que tanta gente prefere a comodidade dos padrões pré-estabelecidos? Por que preferem seguir mapas desenhados por outros em vez de abrirem sua própria trilha? Simples. Seguindo as rotas previstas no mapa, sabe-se com certeza aonde se vai chegar. Quem abre seus próprios caminhos deve estar preparado para surpresas. Entre uma vida de certezas e uma vida de surpresas, a maior parte opta pela primeira. E assim, deixa-se de viver plenamente. A expectativa cede ao tédio. A adrenalina e a dopamina são substituídas pelo excesso de melatonina. 

Há um episódio bíblico de proporções épicas desconhecido pela maioria e que relata a proeza de um herói canhoto. Os moabitas estavam oprimindo Israel quando Deus ouviu o clamor de seu povo, enviando-lhe um libertador. Eúde, um benjamita canhoto, foi a Eglom, rei dos moabitas, para entregar o dinheiro do “tributo” que os israelitas pagavam. Ele portava uma espada feita sob medida na coxa direita, por baixo da capa. Provavelmente, antes de ser admitido à presença de Eglom, ele foi revistado, mas apenas do lado esquerdo, onde os homens destros costumavam guardar suas armas. Quando Eúde chegou, o rei estava em seu aposento privativo, sem ninguém por perto. Aproveitando a oportunidade, Eúde sacou sua espada contra Eglom e fugiu, mas não pela entrada normal. Em vez disso, ele trancou a porta da sala privativa do rei, escapando sem ser visto. Demorou algum tempo até que seus servos percebessem que algo estava errado. Mas ninguém ousava interromper a uma reunião do rei. Quando, finalmente, destrancaram a porta, eles o encontraram morto (Juízes 3:12-31). Um canhoto livrou Israel da opressão de um rei déspota, possibilitando ao seu povo viver oitenta anos de paz. O fator preponderante na proeza de Eúde foi a surpresa. Talvez este devesse ser o nosso trunfo. 

Quem sabe por isso que Jesus orientou a seus discípulos a oferecerem a face esquerda a quem lhes ferisse a direita (Mt. 5:39). Não se trata de passar um atestado de idiotice, mas de surpreender nosso oponente com uma reação inusitada. Não basta fazer a coisa certa com destreza. Há que se fazer com a motivação sincera que parte do lado esquerdo do peito, isto é, do coração, sem se preocupar com censura de quem quer que seja. 

Que nos julguem! Que nos enviem para a fogueira de suas inquisições! Mas estaremos certos que vivemos plena e autenticamente, de acordo com os desígnios divinos e os mais legítimos anseios do nosso coração.

Abaixo, "Brincar de viver", linda canção de Guilherme Arantes na voz de Maria Bethânia.

"A arte de sorrir, cada vez que o mundo diz não..."


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