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Vamos falar de apropriação cultural?

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Por Hermes C. Fernandes

Uma jovem branca que usava um turbante teria sido abordada por uma negra que a acusou de apropriação cultural. O que uma branca estaria fazendo com um adorno africano? De acordo com seu relato, o uso do turbante se devia ao tratamento de quimioterapia que ocasionara a queda de seus cabelos. Bastou que o episódio chegasse às redes sociais para que viralizasse, tornando a “apropriação cultural” no assunto do momento, provocando muito bate-boca e discussões infindáveis.

O verbo “apropriar” significa tomar para si. “Apropriação cultural” é um conceito da antropologia que se refere a adoção de elementos específicos de uma cultura por um grupo cultural diferente. O conceito passa por uma reflexão política, e possui conotação negativa, especialmente quando a cultura de um grupo que foi oprimido é adotada por um grupo de uma cultura dominante. Pode incluir a introdução de formas de vestir ou adorno pessoal, música, arte, língua ou comportamento social. Estes elementos, uma vez removidos de seus contextos culturais, podem assumir significados diametralmente divergentes dos originais, ou simplesmente menos significativos. 

Cada cultura deve ser vista como um universo de símbolos, frutos de experiências humanas dentro de um contexto particular. Um turbante, por exemplo, carrega significados mais complexos e profundos do que simplesmente ser um adorno. Bem da verdade, por muito tempo, foi visto de forma pejorativa, considerado “coisa de macumbeiro”. Ao usá-lo, o negro não o toma apenas como um elemento estético, mas, sobretudo, como um símbolo de resistência, afirmação e orgulho de suas raízes. Não que haja qualquer problema em um branco resolver usá-lo. Vivemos numa sociedade teoricamente livre, onde cada um opta pelo que bem lhe convém. Porém, antes de usá-lo, deve considerar a questão ética acima da estética. Como sua postura será interpretada pelos que atribuem ao adorno um significado de resistência? Até que ponto seu uso por indivíduos pertencentes à etnia dominante não esvaziará seu significado original, banalizando-o, transformando-o em mais um item da moda?

Recentemente, o mundo fashion se apropriou dos turbantes com estampas étnicas. Modelos brancas posam para editoriais de revistas de moda. Ao ser adotado por uma determinada elite, o turbante passa a ser visto como estiloso. A propósito, por que não usaram modelos negras? Seria, no mínimo, mais digno.

Quando um símbolo de um povo marginalizado é tomado pela classe dominante, ele se esvazia de seu sentido. Trata-se de um processo que envolve privilégios, desigualdade e desrespeito. Mesmo que a intenção seja outra, como por exemplo, elogiar aspectos estéticos de uma cultura. A reapropriação de símbolos da cultura africana por negros do mundo inteiro deve ser encarada como um ato legítimo de afirmação de identidade, sobrevivência, empoderamento e resistência histórica. Não é o simples ato de usar um turbante ou outro adorno qualquer que ofende alguns grupos, mas o fato de usá-lo sem a devida consciência de seu valor simbólico. De onde teria vindo aquele artefato?

Que história ele conta? O que representa? A ofensa se agrava quando um símbolo é usado para fins econômicos e que não resultem em qualquer benefício para a comunidade de origem. Tomei o turbante como exemplo, mas isso se aplica igualmente à música, às tradições, etc.

Há uma passagem bíblica que exemplifica uma situação de apropriação cultural. Trata-se de um salmo composto durante o tempo em que os judeus estavam no exílio babilônico.
“Junto aos rios da Babilônia, ali nos assentamos e choramos, quando nos lembramos de Sião. Sobre os salgueiros que há no meio dela, penduramos as nossas harpas. Pois lá aqueles que nos levaram cativos nos pediam uma canção; e os que nos destruíram, que os alegrássemos, dizendo: Cantai-nos uma das canções de Sião. Como cantaremos a canção do Senhor em terra estranha? Se eu me esquecer de ti, ó Jerusalém, esqueça-se a minha direita da sua destreza. Se me não lembrar de ti, apegue-se-me a língua ao meu paladar; se não preferir Jerusalém à minha maior alegria.” Salmos 137:1-6
Os mesmos babilônios que os mantinham em cativeiro, agora pediam que os entretivessem com os cânticos que eram entoados em sua terra natal. O que fizeram os judeus? Penduraram suas harpas. Recusaram-se a divertir seus algozes. Pode até parecer uma coisa banal, mas o que estava em jogo era sua identidade étnica.

Quando se diz que em Cristo se acabam as distinções étnicas, sociais e sexistas, não significa que a diversidade cultural deva ceder à uniformidade (Gl.3:28). O que o evangelho faz é nivelar todos os povos e suas respectivas culturas. Mas jamais foi seu propósito dissolvê-las, descaracterizá-las, eliminá-las. Não há lugar para etnocentrismo no reino de Deus. Portanto, a produção cultural de um povo deve ser preservada, pois se constitui no que as Escrituras chamam de “as riquezas das nações”, destinadas a serem introduzidas na nova sociedade criada em Cristo (Is.60:11).

Vejo com muita reserva a apropriação cultural de elementos judaicos por parte das igrejas cristãs. Festas judaicas sendo celebradas completamente fora de seus contextos. Apetrechos e elementos cúlticos surrupiados. Danças folclóricas que remontam a diáspora judaica pelo leste europeu adotadas como se fossem provenientes dos tempos bíblicos. Será que alguém se deu o trabalho de perguntar a um rabino judeu o que acha de tal apropriação?

Em momento algum fiz apologia de qualquer tipo de segregação. A cultura é dinâmica. Ela invariavelmente se mescla a outras, produzindo sínteses culturais. O que não se pode é reduzir símbolos caros a uma tradição em meros bens de consumo, artigos da moda para serem ostentados por classe dominante alheia ao sofrimento do povo que os produziu.

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