Por Hermes C. Fernandes
O vocábulo mais usado por Jesus para referir-se ao que comumente chamamos de inferno é geena. O geenaera o aterro sanitário que havia do lado de fora da cidade de Jerusalém. Era considerado um lugar maldito, onde o verme não morria e o fogo nunca apagava.
Para entendermos melhor a natureza do geena, proponho que reflitamos sobre as implicações práticas de algumas das exortações feitas por Jesus. Repare, por exemplo, na advertência abaixo:
“E se a tua mão te fizer tropeçar, corta-a; melhor é entrares na vida aleijado, do que, tendo duas mãos, ires para o inferno, para o fogo que nunca se apaga. {onde o seu verme não morre, e o fogo não se apaga.} Ou, se o teu pé te fizer tropeçar, corta-o; melhor é entrares coxo na vida, do que, tendo dois pés, seres lançado no inferno. {onde o seu verme não morre, e o fogo não se apaga.} Ou, se o teu olho te fizer tropeçar, lança-o fora; melhor é entrares no reino de Deus com um só olho, do que, tendo dois olhos, seres lançado no inferno.” Marcos 9:43-47
Ora, sabemos que ao ressuscitarmos no último dia, teremos novos corpos, perfeitos e incorruptíveis. Ninguém vai ressuscitar com ausência de algum membro de seu corpo. Não haverá mutilados na glória eterna! Então, o que Jesus quis dizer com isso? O que significaria “entrar no reino de Deus com um só olho”? Trata-se de uma analogia. Algo só era jogado no lixo, quando não tinha mais utilidade. As figuras dos vermes e do fogo inextinguível foram usadas por Jesus para enfatizar. Enquanto ali se depositassem lixos orgânicos (restos de comida, carcaças de animais e etc.), os vermes jamais morreriam. O cheiro era insuportável. Para diminuir a quantidade dos detritos, ateava-se fogo, que por sua vez, nunca se apagava, porque era constantemente alimentado por lixo novo. Jesus faz uma comparação entre “entrar na vida” e ser lançado na lixeira. Era melhor viver sem os membros, do que ser considerado inútil por Deus, mesmo tendo todos os membros.
O geena é o destino de tudo o que se faz inútil dentro do escopo dos propósitos divinos. Isso nos remete a Romanos 3:10-12a:
“Como está escrito: Não há um justo, nem um sequer; não há ninguém que entenda, não há quem busque a Deus. Todos se extraviaram, e juntamente se fizeram inúteis...”
Não fosse a misericórdia de Deus, todos terminaríamos na lixeira do Reino de Deus.
Portanto, podemos afirmar que o geenarepresenta o fim dado a tudo o que não pode ser aproveitado, que teve sua existência como um fim em si mesmo, que se negou a abrir-se para a vida e que, por isso mesmo, será descartado.
Jesus faz referência ao geena em várias passagens: Mateus 5:22,29-30; 10:28; 18:9; 23:15, 33; Marcos 9:43,45,47; Lucas 12:5.
É neste contexto que quem chama seu irmão de “tolo” estará sujeito ao fogo do geena (Mt.5:22). Devemos temer, não os que matam o corpo, e não podem matar a alma, e sim “aquele que pode fazer perecer no geena tanto a alma como o corpo” (Mt.10:28).
Jesus também denuncia os escribas e fariseus hipócritas, que percorriam “o mar e a terra para fazer um prosélito(novo convertido)”, para depois torná-lo filho do inferno duas vezes mais do que eles. Com isso, Ele estava demonstrando a inutilidade de todo o esforço empreendido por eles (Mt.23:15). “Como escapareis da condenação do inferno” (v.33)?
Em Tiago 3:6, lemos: “A língua também é fogo, mundo de iniquidade situada entre os nossos membros. Ela contamina todo o corpo, inflama o curso da natureza, e é por sua vez inflamada pelo inferno (Geena)”. O “inferno” aqui é uma referência clara à lixeira. Tiago está falando da lixeira que há no coração humano, e confirmando o que Jesus disse: “Ainda não compreendeis que tudo o que entra pela boca desce para o ventre, e é lançado fora? Mas o que sai da boca, procede do coração, e é isso o que contamina o homem. Pois do coração procedem maus pensamentos, assassínio, adultério, prostituição, furto, falso testemunho, blasfêmia”(Mt.15:17-19). Em outra passagem, Jesus diz: “Pois da abundância do coração fala a boca”(Lc.6:45b). No dizer de Paulo quanto àqueles que se extraviaram e se fizeram inúteis, “a sua garganta é um sepulcro aberto; com as suas línguas tratam enganosamente. Veneno de víbora está debaixo dos seus lábios”(Rm.3:13). Não me admira Jesus ter-lhes chamado de “raça de víboras”!
O quanto durará o inferno?
“Assim será na consumação do século. Virão os anjos e separarão os maus dentre os justos, e os lançarão na fornalha de fogo, onde haverá pranto e ranger de dentes.” Mateus 13:49-50
À luz desta advertência concluímos que ser lançado no geena envolve dor, sofrimento e privação (ranger de dentes é não do que se alimentar). Talvez por isso Jesus fosse tão enfático em Suas admoestações. Ele sabia o que estava em jogo e queria poupar-nos a todos de tal destino.
Surge, então, uma questão inevitável: quanto tempo durará tal sofrimento no inferno? Para a maior parte dos cristãos atuais, a resposta inequívoca, deve ser dada em uníssono: eternamente.
Por mais que se acredite nisso, isso jamais deveria nos deixar confortáveis. Afinal, estamos nos referindo a seres humanos, criados à imagem e semelhança de Deus. Recuso-me a acreditar que alguém tenha prazer nesta “verdade”. Só mesmo um sádico se alegraria no fato de alguém ser condenado a uma pena irrevogável e eterna. Que pecado seria tão grave que deveria valer o sofrimento de alguém por eras intermináveis? Não seria algo desproporcional? Haveria desproporcionalidade na justiça divina? Antes de nos atrevermos a uma resposta, vejamos o que leva muitos a crerem que o inferno será eterno.
Em Mateus 25:41 lemos que o justo Juiz dirá “aos que estiverem à sua esquerda: Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, destinado ao Diabo e seus anjos.”
Ora, se o fogo é eterno, logo, o sofrimento provocado por ele também deverá sê-lo. Esta é a conclusão a quem muitos chegam a partir desta passagem em particular. Porém, precisamos entender o significado da palavra “eterno” neste texto. Quando o adjetivo aioniossignificando “eterno” é usado no grego juntamente com substantivos de ação, ele se refere ao resultado da ação, não ao processo. Assim a expressão “castigo eterno” é comparável a “redenção eterna” e a “salvação eterna”, sendo todas expressões bíblicas. Os que se perdem não passarão eternamente por um processo de castigo, mas serão punidos uma vez por todas com resultados eternos.
Bem da verdade, os linguistas discutem o sentido das palavras hebraicas e gregas que se traduzem por “eterno” e “eternamente” nas Escrituras (olam, em hebraico; aion, aionios, no grego). Isso pode parecer meio complicado para um leigo, mas uma maneira de entender a questão mais facilmente é comparando várias traduções. Por exemplo, há traduções bíblicas que trazem no Salmo 23:6: “E habitarei na casa do Senhor por longos dias”. Outras dizem, “habitarei na casa do Senhor para sempre”. O texto original é o mesmo, mas um tradutor verteu o termo hebraico olam por “longos dias” e outro por “para sempre”, o que não significa exatamente a mesma coisa, obviamente.
Na lei mosaica havia um arranjo pelo qual um escravo serviria ao seu amo “para sempre” (olam) (Êxodo 21:1-6), mas esse “para sempre” é relativo ao tempo de vida do indivíduo, o que poderia significar “por breve período” ou “por longos dias”, dependendo da longevidade do mesmo.
Vejamos, por exemplo, o caso da guarda do sábado: o concerto divino com Israel foi “perpétuo”, no entanto findou na cruz! Então, como uma coisa perpétua pode ter um fim? Pela linguagem hebraica, assim é. O termo olam tem um caráter relativo ao tempo de duração daquilo a que se refere.
No Novo Testamento não é diferente. Paulo se refere a Onésimo, o escravo convertido, que devia voltar a servir “a fim de que o possuísseis para sempre (aionios)” (Filemon 15 e 16). Mas esse “para sempre” significava até o fim da vida do escravo!
E o que dizer do “fogo eterno” que queimou Sodoma e Gomorra, mas não está queimando até hoje? Comparando-se diferentes traduções bíblicas percebe-se que o texto de Judas 7 foi alterado ilegitimamente por tradutores na Versão Almeida Revista e Atualizada em português. No original grego consta pyròs aioniou (fogo eterno), caso genitivo, que qualifica o termo “punição”. Então, não resta dúvida que a melhor tradução é “sofrendo a punição do fogo eterno”.
Se nos atentarmos nos versos abaixo percebe-se algo que talvez nunca haja chamado a atenção de muitos leitores da Bíblia e que ilustra bem a relatividade de sentidos das palavras hebraicas traduzidas por “eternamente”, “para sempre”. Profetizando acerca de Jerusalém, o profeta Isaías declara:
“O palácio será abandonado; a cidade populosa ficará deserta; Ofel e a torre da guarda servirão de cavernas para sempre (...) até que se derrame sobre nós o Espírito lá do alto: então o deserto se tornará em pomar e o pomar será tido por bosque.” Isaías 32: 14 e 15.
Repare que as expressões “para sempre” e “até que” aparecem num contexto imediato. Como algo pode ser estipulado para sempre e ao mesmo tempo até que aconteça certo fato? Isso no português não faria sentido, mas no hebraico sim.
Outra passagem muito significativa encontra-se pouco adiante. Ao falar dos edomitas que Deus havia destinado “para a destruição”, o profeta Isaías se vale da mesma figura de linguagem:
“Os ribeiros de Edom se transformarão em piche, e o seu pó em enxofre; a sua terra se tornará em piche ardente. Nem de noite nem de dia se apagará; subirá para sempre a sua fumaça; de geração em geração será assolada, e para todo o sempre ninguém passará por ela.” Isaías 34: 9 e 10.
Ora, os edomitas desapareceram há muitos séculos. Será que poderíamos afirmar que ainda existem piche ardente e fumaça subindo na terra de Edom? É óbvio que não! Trata-se, portanto, de uma hipérbole com o objetivo de enfatizar algo.
Tanto Jesus , quanto João no livro de Apocalipse, lançaram mão dessa mesma linguagem para descrever a sorte final dos ímpios. O fogo é eterno (como o que destruiu Sodoma e Gomorra), e queimará de dia e de noite com sua fumaça subindo “para sempre”, como também se deu na terra de Edom séculos atrás!
Um castigo com duração eterna não parece fazer jus à imagem de Deus que emerge das Escrituras como um todo. Lemos, por exemplo, no verso 5 do Salmo 30 que “a sua ira dura só um momento; no seu favor está a vida. O choro pode durar uma noite, mas a alegria vem pela manhã.” Leia novamente para não ter dúvida: Sua ira dura só um momento. Enquanto “sua misericórdia dura para sempre”(Sl.106:1). Tenho a impressão que temos apresentado ao mundo um deus que é o inverso deste, cuja misericórdia dura só um momento, mas sua ira dura para sempre.
O Salmo 103, versos 8 e 9 nos oferece um quadro ainda mais nítido:“Compassivo e misericordioso é o Senhor; tardio em irar-se e grande em benignidade. Não repreenderá perpetuamente, nem para sempre conservará a sua ira.”
Estou certo de que não estamos tratando com uma divindade bipolar! Se Ele diz que não repreende perpetuamente, quem somos nós para discordar? E há uma razão lógica para isso. O profeta Miquéias diz que “Ele não retêm a sua ira para sempre, porque tem prazer na misericórdia” (Miquéias 7:18).Somente uma divindade sádica teria prazer no sofrimento de suas criaturas. Mas pelo jeito, tem quem tenha mais prazer em saber que enquanto uma pequena minoria estará gozando das beatitudes eternas, a grande maioria estará ardendo num inferno eterno.
Além de não ter prazer no sofrimento de ninguém, o Deus revelado nas Escrituras não sofre de amnésia: Mesmo na Sua ira, Ele se lembra da misericórdia (Habacuque 3:2).
E para reforçar ainda mais a imagem de um Deus absolutamente clemente e misericordioso, convém salientar que “a misericórdia triunfa sobre o juízo” (Tiago 2:13). Logo, ela sempre tem a última palavra. Não há sentença que ela não possa revogar.
As únicas chamas verdadeiramente eternas são as do amor. “Suas brasas são fogo ardente, são labaredas do Senhor” (Cantares 8:6).
Se é verdade que o amor jamais se acaba, logo, estamos “condenados” a amar para sempre os que nos acompanham na estrada da existência. Mesmo depois que adentrarmos os portais celestiais, nosso amor por cada um deles permanecerá e, talvez, até aumente, uma vez que estaremos livres dos ruídos de nossa natureza pecaminosa.
Quem ama, certamente se importa com o bem do ente amado. Como, então, poderíamos nos sentir plenamente felizes desfrutando da glória destinada aos filhos de Deus, sabendo que em algum lugar do universo, as pessoas a quem tanto amamos estarão sendo torturadas, e que seu sofrimento não duraria um dia, nem um ano, ou mesmo um século, mas por toda a eternidade?
Será que teremos que desistir de amá-las? Será que Deus nos submeterá a uma amnésia? Será que pais que foram salvos terão que se esquecer da existência dos filhos condenados à perdição? Por duas vezes lemos no livro de Apocalipse que Deus enxugará dos nossos olhos toda lágrima (7:17; 21:4). As razões pelas quais não haverá mais choro é que também “não haverá mais morte, nem pranto, nem clamor, nem dor.” Se ainda houver dor em algum lugar do cosmos, então, haverá motivo para lágrimas. Não apenas por parte dos que forem condenados, mas também dos que com os tais se importarem.
No próximo post, estaremos respondendo a questões levantadas a partir do posicionamento que assumimos quanto à duração do inferno. Questões do tipo “então, todos serão salvos?” serão respondidas à luz de passagens bíblicas geralmente relegadas e outras que julgamos mal compreendidas.