Por Hermes C. Fernandes
Muito tem sido debatido acerca da doutrina da eleição.
De um lado, encontramos os calvinistas, defensores do direito que Deus tem de
escolher quem quer que seja, sem ao menos consultar a vontade humana. Do outro,
os arminianos, advogando o direito humano de ser consultado, e ter sua vontade
respeitada, mesmo pelo seu Criador. Ambos vêm se digladiando há séculos. Afinal
de contas, a Bíblia respalda tal doutrina?
Não é preciso muito conhecimento do texto sagrado para
dar-se conta de que tal doutrina é amplamente difundida ali. De Gênesis a Apocalipse. Mesmo o mais ferrenho arminiano terá que admitir. Ou Deus não
escolheu a Noé para construir a Arca e salvar o remanescente humano do dilúvio?
Ou também não escolheu a Abraão para originar a estirpe que traria Jesus ao
Mundo? E igualmente não escolheu a Davi dentre todos os seus irmãos? E por aí
vai…
O problema não é a doutrina da eleição em si, mas a
maneira como ela tem sido exposta e defendida.
Primeiro, a eleição jamais foi um fim em si mesma,
como sugerem alguns calvinistas. Mas tão-somente um meio para alcançar um fim
maior. Por exemplo: Deus escolhe a Noé para garantir a perpetuação da raça
humana. Portanto, um foi escolhido para o bem de todos. Deus escolhe a Abraão
para que por ele e sua descendência todas as famílias da Terra fossem
abençoadas. E o que dizer de Paulo, chamado por Deus de "vaso
escolhido" para fazer conhecido entre os gentios o mistério do Evangelho?
Mais uma vez, um foi
escolhido para o bem de todos.
Apesar disso, Israel parece não ter compreendido bem
sua posição como povo escolhido para benefício de todos os povos, e arrogou
para si o monopólio do sagrado. Creio que justamente nesta vala que a igreja
tem caído. Em nossa pobre concepção, ser eleito é sinônimo de ser os únicos com
os quais Deus Se importa, os detentores do copyright de tudo quanto é sagrado, os
prediletos. Ora, a mesma Bíblia que afirma nossa eleição, também declara que
Deus não faz acepção de pessoas.
Costumo usar uma analogia para tentar explicar a
maneira como a igreja tem se portado quanto à doutrina da eleição. A humanidade
é um navio naufragante como o Titanic. Os calvinistas, preocupados em salvar
sua pele, declaram terem sido escolhidos pelo comandante da nau a ocupar os
botes salva-vidas. Os arminianos, por seu turno, se amotinam reivindicando o
direito de serem salvos à despeito do que diga o comandante. Pra eles vale o
“salve-se quem puder”, ou melhor, “quem quiser”. Enquanto isso, aqueles que
realmente creem na eleição esboçada nas Escrituras, reúnem-se com o comandante
para consertar o navio. Nem calvinismo, nem arminianismo. Eu chamaria tal
postura como “reinismo”, pois os que a defendem acreditam que o reino de Deus foi
introduzido no mundo para garantir a redenção da humanidade, e a restauração de
tudo quanto o pecado danificou. Dentro desta perspectiva, o último capítulo na
história da redenção será o cumprimento da promessa de que “Deus seja tudo em todos” (1 Co.15:28).
Portanto, não podemos transformar a eleição numa
doutrina que nutra nosso orgulho religioso, fazendo-nos acreditar que fomos
preferidos, enquanto todos os demais foram preteridos por Deus. Não estou aqui
defendendo que no final das contas todos serão igualmente salvos. Não vem ao
caso. E sim que devemos voltar nossos esforços para alcançar a todos, ainda que
alcancemos apenas a alguns. Como disse Paulo: “Fiz-me
como fraco para os fracos, para ganhar os fracos. Fiz-me tudo para todos, para
por todos os meios chegar a salvar alguns” (1 Co. 9:22).
Qual será nossa surpresa se no final descobrirmos que
muitos daqueles que se julgavam “escolhidos” estarão entre os réprobos,
enquanto que outros a quem desprezávamos, reputando-os como irremediavelmente
perdidos estarão entre os redimidos?
O fato de sermos escolhidos não deve fazer com que nos
enxerguemos como tais. Devemos manter-nos humildes, e sempre dependentes da
misericórdia divina. Postura semelhante era adotada por Paulo, o apóstolo que
mais falou da preciosa doutrina da eleição:
“Não que já a tenha
alcançado, ou que seja perfeito; mas prossigo para alcançar aquilo para o que fui
também preso por Cristo Jesus. Irmãos, quanto a mim, não julgo que o haja
alcançado; mas uma coisa faço, e é que, esquecendo-me das coisas que atrás
ficam, e avançando para as que estão diante de mim, prossigo para o alvo, pelo
prêmio da soberana vocação de Deus em Cristo Jesus. Por isso todos quantos já somos
perfeitos, sintamos isto mesmo;
e, se sentis alguma coisa de outra maneira, também Deus vo-lo revelará.” Filipenses
3:10-15
Não basta sabermos o que somos, mas também
como nos sentimos com relação a isso. Não façamos da eleição uma justificativa
para sentir-nos superiores aos demais. Mesmo que sejamos “perfeitos”, no sentido
de que nossa debilidade é suprida em Cristo, admitamo-nos perfeitamente
imperfeitos. Ainda que aos olhos de Deus a obra esteja acabada, percebemo-nos
em processo de acabamento. Ele nos santificou, todavia devemos buscar a
santificação. Ele nos justificou, todavia devemos encarnar a justiça do Reino
de Deus. Ele nos predestinou, contudo devemos perseverar até o fim. Ele nos
abençoou, porém devemos buscar ser bênção na vida de todos. Nas palavras de
Pedro, devemos procurar fazer cada vez mais firme a nossa vocação e eleição,
porque, fazendo isto, nunca jamais tropeçaremos (2 Pe. 1:10).
Na esperança de não ser mal interpretado,
ouso aqui citar Nietzsche: "Grande, no homem, é ser ele uma ponte, não um
objetivo: o que pode ser amado no homem é ser ele uma passagem e um declínio.
Amo aqueles que não sabem viver a não ser como quem declina, pois são os que
passam."