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Do Paraíso do Tuiuti para os do paraíso do "tô nem aí"

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Por Hermes C. Fernandes

Do meio da avenida, ouviu-se uma voz. Uma voz que a tantas outras calou. Uma voz que não se intimidou com os que tentaram calá-la. Uma voz vinda justamente de quem considerávamos não ser capaz de enxergar a um palmo do nariz. Para surpresa nossa, enxergou o que não queríamos ver. Uma voz que denunciou os que nos faziam fantoches. Uma voz profética, diríamos. Uma voz que depôs contra o sistema opressor e seus protagonistas. Uma voz de quem não suporta mais viver de esmolas. Que não se contenta apenas com feijão com arroz. Que não vê a hora de lançar fora a capa que o torna refém. 

Mas do outro lado do muro, estão os que se alinham aos poderosos. Aqueles cujo discurso nada mais faz que justificar a opressão, pois, no fundo, se locupletam dela. Os que dizem enxergar melhor por estarem numa posição privilegiada. Que assistem de camarote ao que se passa lá embaixo sob seus narizes empinados. Gente iluminada. Cujas luzes não passam de breu. Acham que camuflados entre as folhagens de sua justiça própria, poderão ver, mas sem serem vistos; poderão apontar, mas sem serem apontados; poderão julgar, sem serem julgados; explorar, sem serem explorados. Protegidos pela lei. Isentos de responsabilidades. Ignoram o que se passa para além dos muros de sua religiosidade. O que ocorre na avenida é efeito colateral da ausência dos que se escondem em sua espiritualidade de fachada. 

Agora, diga-me: quem é Zaqueu para julgar Bartimeu? Quem somos nós para julgar a Tuiuti? Como uma igreja nanica se acha autorizada a desdenhar de quem se mostrou gigante na passarela do samba? O mesmo Cristo que pode salvá-los com sua mensagem subversiva e libertadora, pode nos confrontar publicamente, expondo nossas idiossincrasias e contradições. Não se enganem! É por Cristo que a Paraíso do Tuiuti clamava na Sapucaí! Não o Cristo adestrado pelo sistema. Mas o Cristo rebelde, insurgente, que põe o dedo na ferida e arranca os Zaqueus de seus camarotes. Porém, por não encontrarem o verdadeiro Cristo anunciado em nossas igrejas, buscaram numa entidade ancestral conhecida como Preto Velho o que melhor se encaixava em seus anseios por libertação. Em vez de prestarmos atenção ao grito de Bartimeu, preferimos atentar para sua capa religiosa destina a tornar-se obsoleta tão logo ouça Cristo lhe chamar. 

Bartimeu só existe naquelas condições por causa de Zaqueu. As pedras clamam porque os filhos do reino se calaram. Ouçam o que dizem os blocos gospel que se proliferam no carnaval. Sem querer generalizar, o que se ouve é um monte de frases de efeito e gritos triunfalistas do tipo “O Brasil é do Senhor Jesus”, “Rei, rei, rei, Jesus é o nosso rei!”. E quando resolvem denunciar o pecado, coam mosquitos e se engasgam com dromedários. Nem percebem que aquele discursozinho fraco sobre “família tradicional”, contra a agenda gayzista e a ideologia de gênero, não passa de uma tentativa de lubrificar a máquina religiosa para eleger uma bancada evangélica cada vez mais robusta. Forte quantitativamente falando, porém, fraquíssima em termos qualitativos, visto ser comprometida em sua maior parte com o que há de mais conservador e retrógrado. 

Desta vez, o som dos tamborins abafaram o das panelas. 

 Ah, como eu gostaria que esta novela terminasse como a passagem bíblica em que o explorador se compromete a devolver o quádruplo de tudo o que extorquiu de gente humilde como o que esmolava do lado de fora dos muros. Enquanto os ‘sujos’ nos perturbam com seus gritos na avenida, os ‘limpinhos’ se calam enfurnados em seus retiros espirituais. O jeito é criar nossos próprios blocos e assim abafar o grito dos excluídos. Que nossos trios elétricos sejam mais potentes que os deles! Como diz o samba enredo da Paraíso do Tuiuti, “a vida se lamenta por nós dois.” Tanto Bartimeu, quanto Zaqueu, são lados da mesma moeda. Ambos sofrem. Uns sofrem na escassez. Outros sofrem na abundância. Só espero que não falte em nosso peito um coração. 

Pode até ser que não tenhamos a mesma fé, nem a mesma cor, mas o sentimento de repulsa pelo o que está aí deveria ser o mesmo. Chega desta ‘bondade cruel’! Se lá trás se ouviu “Jesus, Filho de Davi, tem misericórdia de mim!”, hoje se ouve na Sapucaí, “Meu Deus! Meu Deus! Se eu chorar não leve a mal. Pela luz do candeeiro, liberte o cativeiro social.” Quem tem ouvidos, ouça. Quem não tem, peça a Deus que lhe dê um coração.

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