Por Hermes C. Fernandes
Karl Marx, o idealizador do comunismo, sugeriu que a
história deveria ser entendida sob o prisma da luta entre classes. Desde os
primórdios da civilização sempre houve conflito entre etnias, religiões,
cosmovisões diferentes e classes sociais. Os que vencem consideram-se
superiores aos vencidos, e, portanto, no direito de dominá-los. Parece-me que
Marx foi preciso em seu diagnóstico, todavia, não poderia dizer o mesmo acerca
do remédio que prescrevera, dado seus conhecidos e indesejáveis efeitos
colaterais.
De onde provem a hierarquização social? Seria o plano
original do Criador que os homens se arrogassem o direito de exercer domínio
sobre outros? Apesar de parecer-me óbvio que nada ocorre sem a sua devida chancela,
atrevo-me a crer que isso não constava do plano original de Deus.
O relato inicial de Gênesis dá conta de que “criou Deus o homem à sua imagem (...) homem
e mulher os criou” (Gn.1:27). Não há qualquer indício de que houvesse
alguma hierarquia entre eles. Ambos foram criados à imagem e semelhança de
Deus.
No segundo relato, lemos que, depois de dar nome aos bichos,
o homem sentiu-se só, pois não encontrara alguém que lhe fosse compatível. “Então o SENHOR Deus fez cair um sono pesado
sobre Adão, e este adormeceu; e tomou uma das suas costelas, e cerrou a carne
em seu lugar; e da costela que o SENHOR Deus tomou do homem, formou uma mulher,
e trouxe-a a Adão” (Gn. 2:20-25).
Mais uma vez não encontramos menção à posição do homem como superior à mulher.
Ao encontrar-se com
sua companheira pela primeira vez, Adão disse: “Esta é agora osso dos meus ossos, e carne da minha carne; esta será
chamada mulher, porquanto do homem foi tomada. Portanto deixará o homem o seu
pai e a sua mãe, e apegar-se-á à sua mulher, e serão ambos uma carne. E ambos
estavam nus, o homem e a sua mulher; e não se envergonhavam”(Gn. 2:20-25).
A expressão “carne
da minha carne” pode indicar a malha social que começava a ser tecida.
Cada novo membro da família humana deveria ser um novo ponto desta tecelagem.
Já a expressão “osso dos meus ossos” pode apontar para a estrutura por trás
desta malha, dando-lhe sustentação. Sem os ossos, o corpo se dissolveria. Assim
também, sem um esqueleto social formado de instituições fortes, a sociedade se
dissolve. A primeira destas instituições é, sem dúvida, a família. Não fosse a
queda, talvez esta fosse a única. Porém, a queda produziu novas demandas,
dentre elas, a de um governo.
Homem e mulher
deveriam ser parceiros, os tecelões da sociedade. Porém, a queda interferiu na
harmonia original, produzindo conflito de interesses. O pronome “nós” foi
substituído pelo “eu” e “ele”. O “serão ambos uma só carne” deu lugar ao “cada
um por si”.
Tão logo foi
tentada pela serpente intrusa, a mulher estendeu a mão em direção à árvore
vetada por Deus, “tomou do seu fruto, e comeu, e deu também a seu
marido, e ele comeu com ela” (Gn. 3:6).
Repare na ordem dos
fatos: ela primeiro toma para si e come, só então oferece ao seu marido.
Primeiro, eu. Depois, você. Este gesto
prenunciou a queda. Foi o salto que os lançou despenhadeiro a baixo. Eva
usurpou a primazia ao servir-se a si mesma.
O evento chamado
pelos teólogos de Queda não apenas alienou a humanidade de Deus, mas
também comprometeu seriamente as
relações sociais. Ora, quando um osso se fratura, faz-se necessário o uso de
uma tala até que ele seja regenerado. O
que deveria sustentar o corpo, agora tem que ser sustentado por um elemento
estranho ao corpo. Às vezes, tem-se que usar muletas para evitar que o corpo se
apoie sobre a perna fraturada.
Somente a partir da
Queda, Deus estabelece uma hierarquia entre homem e mulher, que serviria de
base para toda estrutura hierárquica que viria depois.
Observe a sentença
proferida por Deus:
“E à mulher disse: Multiplicarei
grandemente a tua dor, e a tua conceição; com dor darás à luz filhos; e o teu
desejo será para o teu marido, e ele te dominará.” Gênesis 3:16
A relação antes harmoniosa agora precisaria ser engessada
até que se recuperasse plenamente.
Milênios se passaram desde então, quando a Cura chegou ao
mundo dos homens. Todavia, Jesus teria
que inserir-Se no meio do conflito a fim de hastear a bandeira da paz.
Recentemente sofri uma queda do púlpito da igreja. Ao descer
dele para atender a alguém que solicitava minha atenção, apoiei-me num
pedestal, pisei em falso e caí. Levado para o hospital, soube que precisaria
imobilizar meu pé direito com uma bota ortopédica e que, depois de alguns dias
de “perna pro ar”, talvez necessitasse de fisioterapia. Já se passaram dois meses
e meu pé ainda dói. Caminho normalmente, porém, às vezes, quando ele incha,
volto a mancar. O médico já me advertira que a recuperação seria lenta.
Enquanto meu pé estava imobilizado, tinha que saltar apoiando-me no pé esquerdo,
como se fosse um saci-pererê. Resultado: o pé esquerdo começou a doer mais do
que o direito. Todo o peso do corpo agora era apoiado nele, sobrecarregando-o.
Depois da Queda do homem, Deus atou-o com a tala da Lei
moral e engessou-o com a Lei cerimonial. Cristo veio e removeu o gesso.
Todavia, ainda nos resta um tempo para que recobremos o vigor original de
nossas relações. A igreja seria, por assim dizer, a fisioterapeuta do mundo. Por isso, o Novo Testamento corrobora com a ideia de que a
relação conjugal deve ser encabeçada pelo homem:
“Vós, mulheres, sujeitai-vos a
vossos maridos, como ao Senhor; porque o marido é a cabeça da mulher, como
também Cristo é a cabeça da igreja, sendo ele próprio o salvador do corpo. De
sorte que, assim como a igreja está sujeita a Cristo, assim também as mulheres
sejam em tudo sujeitas a seus maridos. Vós, maridos, amai vossas mulheres, como
também Cristo amou a igreja, e a si mesmo se entregou por ela.” Efésios
5:22-25
A ferida desinflamou, mas não cicatrizou ainda. O gesso e a
tala foram removidos, mas o paciente não consegue pisar firmemente. Ele ainda
manca. Por isso, um dos pés terá que ser sobrecarregado por mais um tempo.
Todavia, Cristo Se oferece como um novo modelo de primazia para o homem. Em vez
de simplesmente dominá-la, o homem deve amá-la e se entregar por sua mulher,
assim como Cristo amou a Sua igreja, entregando-Se por ela. O que seria mais difícil, sujeitar-se a outrem
ou entregar-se para morrer por ele? Ademais, sujeitar-se ao outro não é prerrogativa somente da
mulher. No verso anterior, Paulo diz que devemos todos sujeitar-nos “uns aos
outros no temor de Deus” (Ef.5:21).
Em Cristo, o conflito entre classes termina. Quem antes se arrogava
direito de dominar os demais, agora é desafiado a apascentar o rebanho de Deus,“não por força, mas
espontaneamente segundo a vontade de Deus; nem por torpe ganância, mas de boa
vontade;nem como dominadores sobre os que vos foram confiados,
mas servindo de exemplo ao rebanho” (1 Pe.5:2-3). Por isso que Paulo, apesar da
autoridade que tinha, não se estribava nela, mas apelava à consciência das
pessoas. Escrevendo a Filemon, ele diz: “Ainda que tenha em Cristo grande
confiança para te mandar o que te convém,todavia peço-te antes por amor” (Filemom 1:8-9).
Em
Cristo, “não há judeu nem grego; não há escravo nem livre; não há homem nem
mulher” (Gl.3:28). A igreja é, por assim dizer, um ensaio de como as
relações sociais se darão na sociedade definitiva, quando Cristo “houver destruído todo
domínio, e toda autoridade e todo poder” (1 Co.15:24), e Deus for “tudo em
todos” (v.28).
A proposta do reino não é hierarquização, mas sujeição mútua
em amor. Assim como os ossos devem suportar o peso dos demais alternadamente, dependendo da posição
em que o corpo estiver, assim devemos suportar uns aos outros em amor (Cl.3:13).
Suportar aqui não tem o significado de tolerar mas de ser suporte, isto é,
aquilo que dá sustentação.
Para tal, devemos estar dispostos a servir uns aos
outros, dando-lhes sempre primazia. Não se trata de ser seletivo, de
escolher a quem se deve servir, mas de servir igualmente a todos. Não se deve
usar a liberdade concedida pela graça como pretexto para uma vida autocentrada. Servir ao outro é bem diferente de servir-se do outro. Considere o que Paulo diz sobre isso:
“Porque vós, irmãos, fostes chamados
à liberdade. Não useis então da liberdade para dar ocasião à carne, mas servi-vos
uns aos outros pelo amor.” Gálatas 5:13
Para o apóstolo, o
cristão carnal é aquele que se nega a sujeitar-se aos demais , servindo-os em
amor. Ele mesmo admite que“sendo livre para com todos”, fez-se “servo de todos
para ganhar ainda mais” (1 Co.9:19). Da perspectiva do mundo, quanto mais a
gente se impõe aos demais, mais ganhamos. Porém, o evangelho subverte esta
ordem, de sorte que, quanto mais servimos, tanto mais ganhamos.
Há, porém, uma diferença entre a submissão cega e a
submissão consciente. Na clássica passagem em que fala das autoridades
estabelecidas por Deus, Paulo diz que não devemos submeter-nos meramente por
medo de eventuais sanções, mas por consciência (Rm.13:5). Submissão cega não
passa de subserviência, e, esta, por sua vez, ora é motivada por medo, ora por
interesse. Já a submissão requerida pelo evangelho é motivada exclusivamente
por amor.
E será este mesmo amor que nos farar preferir-nos“em honra
uns aos outros” (Rm.12:10). Se alguém tiver que ser honrado, que seja o outro,
não nós. Em vez de enciumados, sentimo-nos realizados diante da honra recebida
pelo nosso irmão, afinal de contas, somos membros uns dos outros, como nos
ensinam as epístolas paulinas. Na mesma passagem em que fala da sujeição mútua
entre os cristãos, Paulo diz que além de membros do corpo de Cristo, também
somos membros “da sua carne, e dos seus ossos” (Ef.5:30). O que deve nos unir
não são apenas nossas ações (carne), mas também nossas motivações (ossos). Para
Deus, o que não se vê é ainda mais importante do que o que se vê.
O que nos conecta uns aos outros não são os papéis sociais
que desempenhamos, e sim nosso DNA espiritual. Somos todos “imagem e semelhança”
de Deus.
É claro que somos diferentes. Temos papéis distintos. Porém,
iguais em dignidade. Mesmo“os membros do corpo que parecem ser os mais fracos
são necessários; e os que reputamos serem menos honrosos no corpo, a esses
honramos muito mais; e aos que em nós são menos decorosos damos muito mais
honra. Porque os que em nós são mais nobres não têm necessidade disso, mas Deus
assim formou o corpo, dando muito mais honra ao que tinha falta dela” (1
Co.12:22-26). É desta maneira o tecido social é devidamente calibrado. Os mais
fracos devem ser os mais honrados. Já os “nobres” dispensam tais honrarias. É
como alguém que tem uma perna mais curta que a outra. A perna normal não
precisa de um sapato com salto maior, mas a menor sim.
Ainda mais importante que a honra concedida a uns em
detrimento de outros é o cuidado recíproco. Paulo insiste em que os membros
devem ter “igual cuidado uns dos outros. De maneira que, se um membro padece,
todos os membros padecem com ele; e, se um membro é honrado, todos os membros
se regozijam com ele” (1 Co.12:22-26). Todo cuidado é uma expressão de amor. Só
cuida quem se importa, e só se importa com quem se ama. Assim, se alguém for
honrado em nosso lugar, sentiremos como se nós mesmos fôssemos honrados. E se
alguém estiver sofrendo, nos solidarizaremos com a sua dor.
Honrar é dar a primazia ao outro, ceder a vez, estimar o
interesse alheio superior aos nossos. Isso é ter“os mesmos sentimentos que
houve em Cristo Jesus”. É atender à
admoestação apostólica de que“cada um considere os outros superiores a si mesmo”, não
atentando “cada um para o que é propriamente seu, mas cada qual
também para o que é dos outros” (Fp.2:3-4).É fácil? Certamente que não.
Mas é o que o evangelho demanda de nós. Os últimos terão que ser os primeiros.
E para tal, os primeiros terão que ser os últimos.
Será
assim que subverteremos a ordem vigente no mundo desde a Queda de nossos primeiros
ancestrais. Mesmo
antes de vendê-lo por trinta moedas de prata, traindo assim o Seu mestre, Judas
traiu a proposta do reino de Deus.
Os
discípulos já haviam sido advertidos de que dentre eles havia um traidor. Todos
queriam um sinal que o identificasse. Engana-se quem imagina que o traidor fora
reconhecido por um beijo. O beijo identificou o traído, não o traidor.
Dois
sinais identificariam quem O trairia:
“O que põe comigo a mão no prato, esse me há de trair.” Mateus 26:23
“O que come o pão comigo, levantou contra mim o seu calcanhar.” João 13:18
Ambos os sinais seriam vistos na mesma ocasião, a saber, na
última ceia de Jesus com Seus discípulos. E o que eles revelam?
Meter a mão no prato é servir-se a si mesmo, fazendo exatamente
o que Eva fez no paraíso. Enquanto Jesus partia o pão e servia aos demais,
Judas servia a si mesmo. Partir o pão era tarefa do servo, não de quem estava
sentado à cabeceira da mesa em posição de honra.
Nesta mesma ocasião, os discípulos discutiam quem deveria
ser o maior entre eles. Jesus aproveitou a oportunidade para dar-lhes uma lição
que jamais se esqueceriam:
“E ele lhes disse: Os reis dos
gentios dominam sobre eles, e os que têm autoridade sobre eles são chamados
benfeitores. Mas não sereis vós assim; antes o maior entre vós seja como o
menor; e quem governa como quem serve. Pois qual é maior: quem está à mesa, ou
quem serve? Porventura não é quem está à mesa? Eu, porém, entre vós sou como
aquele que serve.” Lucas 22:21-27
Só deve ser honrado quem não faz a menor questão da honra, e
sim, de ser vir. É desta maneira que Deus subverte a ordem. O maior deve ser o
menor.
Jesus não limitou-se a dar-lhes um sermão. Mesmo sabendo que
“já era chegada a sua hora de passar deste mundo para o Pai”, Ele insistiu em
amá-los até o fim. Acabada a ceia, Jesus levantou-se, “tirou as vestes, e,
tomando uma toalha, cingiu-se. Depois deitou água numa bacia, e começou a lavar
os pés aos discípulos, e a enxugar com a toalha com que estava cingido” (João 13:1-5). Há um detalhe aqui que
precisamos focar. Quando o primeiro casal rebelou-se contra Deus, a primeira
percepção que tiveram foi que estavam nus. Dentro do simbolismo bíblico, nudez
representa desonra, uma metáfora que
aponta para a exposição de nossa fragilidade. Eles, imediatamente, trataram de
coser folhas de figueira para cobrir sua vergonha. Jesus toma a direção oposta.
Ele Se expõe perante o olhar censor dos Seus discípulos. Sua genitália é
coberta pela toalha, porém, cada vez que enxuga os pés dos Seus discípulos,
fica exposta. Porém, Ele parece não se
importar. Ademais, horas depois Ele seria crucificado totalmente nu, exposto a
toda população de Jerusalém.
Quem teria maior autoridade do que Ele? O texto faz questão
de frisar que Ele sabia“que o Pai tinha depositado nas suas mãos todas as
coisas”. Mesmo assim, sem o menor recato, sem falsos escrúpulos, Ele se desnuda
e lava os pés dos Seus discípulos como se fosse um mero serviçal.
Tal atitude me remete ao episódio em que Davi encabeçava a
procissão que trazia de volta a Arca da Aliança a Jerusalém. Inadvertidamente,
o rei dançava com tanta alegria, que suas partes íntimas ficavam despudoradamente
expostas, provocando o ciúme de Mical, sua esposa, que assistia de sua janela. Ao
chegar em casa, Davi foi duramente criticado:
“Quão honrado foi o rei de
Israel, descobrindo-se hoje aos olhos das servas de seus servos, como sem pudor
se descobre um qualquer.” 2 Samuel 6:20b
Pelo que ele respondeu:
“Perante o Senhor me tenho
alegrado. Ainda mais do que isso me rebaixarei e me humilharei aos meus olhos.
Quanto às servas, de quem falaste, delas serei honrado.” vv 21b-22
Só Deus pode avaliar a motivação de alguém. Para Mical, Davi
estava se desgastando ante os olhos das suas servas. Porém, quanto mais se
humilhava, expondo-se em sua alegria saltitante e ingênua, mais honrado era por
todo o seu povo.
Enquanto lavava os pés dos seus discípulos, dois deles
tiveram comportamento totalmente inverso. Pedro sentiu-se constrangido e tentou
dissuadir Jesus de prosseguir. Ao chegar a vez de Judas, este levantou o
calcanhar para Jesus, como quem quisesse dizer: Se é para lavar, trate de lavar
direitinho (Jo.13:18).
Se o primeiro sinal do traidor foi servir a si mesmo, o
segundo sinal foi abusar do serviço do outro. Ambas são posturas que contrariam
o espírito do evangelho e a causa do reino de Deus. Devemos, antes, deixar-nos constranger pela disposição demonstrada
por outros em nos servir, e, jamais abusar do seu amor.
Ao terminar o serviço, Jesus deve ter-lhes fitado os olhos
quando disse: “Ora, se eu, Senhor e Mestre, vos lavei os pés, vós deveis também
lavar os pés uns aos outros. Porque eu vos dei o exemplo, para que, como eu vos
fiz, façais vós também. Na verdade, na verdade vos digo que não é o servo maior
do que o seu senhor, nem o enviado maior do que aquele que o enviou. Se sabeis
estas coisas, bem-aventurados sois se as fizerdes” (João 13:14-18). Saber nunca foi o suficiente. Saber, incha. Mas o amor,
edifica (1 Co.8:1). Portanto, devemos despir-nos de nossa vaidade e servir àqueles a
quem o Senhor confiou aos nossos cuidados, honrando-os, amando-os até o fim.