Por Hermes C. Fernandes
Alguém,
por favor, ajude-me a entender a desconcertante contradição entre a exigência do
evangelho para que amemos aos nossos inimigos e a ira de Deus contra Seus próprios inimigos. Não devemos “imitar a Deus como filhos amados”? Como
posso amar e perdoar a meus inimigos se Deus odeia os seus? Se isso não é uma
contradição, então, temos que admitir que nossa interpretação é que deve estar equivocada. Ou
será que Deus é do tipo que diz “faça o
que eu mando, mas não faça o que eu faço” Como poderia exigir que déssemos
de comer ao nosso inimigo, mas ao mesmo tempo ameaçar enviar Seus inimigos para
serem torturados eternamente?
Quero
propor que deixemos de lado a paixão, e examinemos friamente a questão.
Muitos
de nossos pressupostos são frutos de equívocos passados de geração em geração,
mas que ninguém tem coragem de confrontar e revisar. Jesus abriu-nos um
importante precedente no Sermão da Montanha ao propor a revisão de alguns
deles. Ao todo, são seis interjeições de Cristo que começam com “Ouvistes que foi dito (...) Eu, porém, vos
digo”( Mt.5:21,27,31,33, 38,43). Jesus não propõe uma mudança nos
mandamentos em si, mas na interpretação que se fazia deles. Uma coisa é o que
lemos, outra é como lemos. Uma tem caráter objetivo, a outra, subjetivo. Por
isso, Jesus perguntou ao doutor da lei: “Que
está escrito na lei? Como lês?” (Lc.10:26).
Numa das
interjeições, Jesus diz:
“Ouvistes que foi dito: Amarás o teu
próximo, e odiarás o teu inimigo.Eu,
porém, vos digo: Amai a vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei
bem aos que vos odeiam, e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem; para
que sejais filhos do vosso Pai que está nos céus.”Mateus
5:43-44
De fato, em lugar algum das Escrituras encontramos instrução
direta sobre “odiar os inimigos”. O mais próximo disso é o que lemos em Deuteronômio
33:27: “O Deus eterno é a tua habitação, e por baixo estão os braços eternos; e
ele lançará o inimigo de diante de ti, e dirá: Destrói-o.”
Deduziu-se daí que Deus estivesse instruindo Seu povo a odiar a seus inimigos.
Como poderíamos destruir a quem não odiássemos? Foi provavelmente baseado nisso
que Davi compôs seu hino: “Persegui os
meus inimigos e os destruí, e nunca voltei atrás sem que os consumisse” (2
Sm.22:38). Tenho a impressão que é também baseado nisso que muitos pregadores
contemporâneos insistem com sua teologia revanchista, instigando o povo a
desejar ver seus inimigos sob seus pés. Todavia, há que se levar em conta o
contexto em que tanto Moisés quanto Davi se expressaram de tal maneira. Em
ambos os casos, o povo de Israel estava envolvido em campanhas militares, e
precisava de garantias de que seria bem-sucedido. Não se pode tomar tais
palavras e aplicá-las num contexto pessoal. Sem contar que hoje vivemos sob a
égide de uma nova aliança, onde o “olho
por olho” foi substituído pelo “ofereça
a outra face”.
Quando Jesus foi rejeitado em uma aldeia samaritana, dois dos
Seus discípulos, Tiago e João, que também haviam sido discípulos de João
Batista, propuseram que se orasse para que Deus derramasse fogo do céu e consumisse
aquela gente. Eles chegaram a citar Elias, justificando nas Escrituras o seu
espírito revanchista. Mas Jesus os repreendeu, dizendo: “Vós não sabeis de que espírito sois. Porque
o Filho do homem não veio para destruir as almas dos homens, mas para salvá-las” (Lc.9:55-56). Não somos discípulos de
Moisés, Davi ou Elias. Somos discípulos de Jesus, e compete ao discípulos
buscar assemelhar-se ao seu mestre.
Ao denunciar o espírito revanchista do Seu povo e propor uma
nova via, Jesus corria o sério risco de ser chamado de herege. Jesus estava questionando uma pseudo-verdade
que se estabelecera naquela cultura por vários séculos. Em vez de odiar os
inimigos, Seus discípulos deveriam amá-los, caso contrário, jamais se
pareceriam com Seu Pai que está nos céus.
Ora, se Deus requer que amemos a nossos inimigos, podemos
inferir que Ele igualmente ame a Seus inimigos, sem exceção. Se Deus ama somente aqueles que O amam, então
Ele não é melhor do que o mais vil pecador. Pelo menos, esta é a conclusão inevitável
a que chegamos ao lermos: “Se amardes
aos que vos amam, que mérito há nisso? Pois também os pecadores amam aos que os
amam.E se fizerdes bem aos que vos fazem bem, que mérito há
nisso? Também os pecadores fazem o mesmo” (Lc.6:32-33)?
O que dizer, então, do provérbio que diz “eu amo os que me amam” (Pv.8:17)?
Trata-se, na verdade, de uma alegoria, onde a sabedoria é apresentada de
maneira personificada. É a sabedoria que declara amar os que a amam. Não se
pode colocar isso nos lábios de Deus.
O problema não termina aí. Há ainda outras passagens que
parecem dizer que Deus só ame os que o amam. Veja, por exemplo, João 14:21,
onde Jesus diz: “Aquele que tem os meus mandamentos e os guarda, esse é o que
me ama; e aquele que me ama será amado de meu Pai, e eu o amarei, e me
manifestarei a ele.” O que Jesus, de fato, está dizendo aqui é
que aquele que O ama, o faz justamente por ser amado por Seu Pai. Logo, nosso
amor a Deus resulta de Seu amor por nós, e não vice-versa. Ou não é isso que as Escrituras claramente
dizem?: “Nós o amamos a ele porque ele
nos amou primeiro” (1 Jo.4:19). O que nos confunde um pouco
é o fato de que o grego tem certos tempos verbais que se perdem quando o texto
é traduzido para o nosso idioma. Um deles, por exemplo, é o aroisto. Uma tradução possível para esse
versículo seria: “Aquele que tem os meus
mandamentos e os guarda, esse é o que me ama, e aquele que me ama é o que é
amado de meu Pai...”
O fato inegável é que nada fizemos para merecer o Seu amor.
E nada podemos fazer para alterar o que Ele sente por nós. Segundo Paulo, todos
“éramos
por natureza filhos da ira, como os outros também. Mas Deus, que é riquíssimo
em misericórdia, pelo seu muito amor com que nos amou, Estando nós ainda mortos
em nossas ofensas, nos vivificou juntamente com Cristo” (Ef.2:5-6). Apesar de merecermos Sua justa
ira, Ele ainda assim nos amou.
Em outra passagem, Jesus diz: “O Pai mesmo vos ama; visto que vós me amastes e crestes que eu saí de
Deus” (Jo.16:27). Pode parecer que Ele estivesse afirmando que o amor do
Pai por nós se deve ao fato de amarmos a Seu Filho. Porém, a verdade é
exatamente o oposto. O amor que temos por Jesus é tão somente a evidência do
amor com que o Pai nos ama.
Seu amor por nós independe de nosso amor por Ele. Paulo
parece ter compreendido as implicações éticas por trás desta revolucionária
verdade. Constrangido por este amor, o apóstolo decidiu igualmente amar às
últimas consequências. Por isso, confessou: “Eu
de muito boa vontade gastarei, e me deixarei gastar pelas vossas almas, ainda
que, amando-vos cada vez mais, seja menos amado” (2 Co.12:15). Será que o amor de um simples
mortal superaria o amor de Deus? Se Paulo pôde amar mais do que o próprio Deus,
então, passemos a cultuá-lo no lugar de Deus. É claro que isso não é possível.
Ninguém jamais amou como Ele nos amou, ama e amará. Ainda que seja menos
amado... Ainda que não O correspondamos.
E quanto à ira justa de Deus? A Bíblia parece clara ao
afirmar que Deus ama a justiça, mas abomina a iniquidade. Sua ira é destinada a
todos os que praticam a injustiça. Concluímos, precipitadamente, que Deus seja
incapaz de amar àqueles sobre quem repousa a Sua ira.
Para corrigir nossa perspectiva, temos que entender que o
termo “ira” não é antônimo de “amor”. O contrário de amor é indiferença. Mesmo
a ira divina nada mais é do que uma faceta do Seu amor. Há
mais amor numa única gota da ira divina do que em todo o oceano de amores
humanos.
Por ser amor, Deus é incapaz de manter-se indiferente a
qualquer uma de Suas criaturas. Amor não é apenas um dos Seus atributos, mas
Sua essência. Ele não tem amor. Ele é amor! Mesmo na ira, Ele se lembra da
misericórdia (Hc.3:2), razão pela qual não somos consumidos por Sua justa indignação
contra o pecado (Lm.3:22). E Seu “ódio” pelo pecado é proporcional ao Seu amor
pelo pecador. Ele odeia o pecado justamente por causa do mal que causa à Sua
criatura.
Enquanto Sua ira dura só um instante (Sl.30:5), Sua
misericórdia dura para sempre. Tenho a impressão de que esta verdade foi
invertida. Na compreensão de muitos, a misericórdia dura um ínfimo momento,
enquanto Sua ira dura para sempre.
Seu amor tem sempre a palavra final. Nas palavras de Tiago, “a
misericórdia triunfa sobre o juízo”
(Tg.2:13). O salmista garante: “Não reprovará perpetuamente, nem para sempre reterá a sua ira
(...) Mas a misericórdia do Senhor é desde a eternidade e até a eternidade” (Sl. 103:9,17).
Mesmo a rejeição provocada
pelo pecado, a mais eloquente expressão da ira de Deus, não é eterna, tampouco,
definitiva. Além de ter duração limitada, Sua ira também é devidamente dosada,
pois Ele conhece a nossa estrutura: “Por um breve momento te deixei, mas com grandes misericórdias
te recolherei;com um
pouco de ira escondi a minha face de ti por um momento; mas com benignidade
eterna me compadecerei de ti, diz o Senhor, o teu Redentor” (Is. 54:7-8).
Somente um Deus que agisse assim poderia exigir: “Dê a sua face ao que o fere, e farte-se de afronta. Pois o Senhor não
rejeitará para sempre” (Lm.3:30-31).
Quando aplicado a Deus, o termo “ira” é sinônimo de “juízo”,
“castigo” ou “correção”, e não de “ódio”. Ao corrigir-nos, Deus demonstra o
quanto Se importa conosco, sem jamais desistir de amar-nos.
“Se os seus filhos abandonarem a minha lei e não seguirem as minhas
ordenanças,se violarem os meus decretos e deixarem de obedecer aos meus
mandamentos,com a vara castigarei o seu
pecado, e a sua iniquidade com açoites;masnão afastarei dele o meu amor; jamais desistirei da minha fidelidade.”Salmos
89:30-33
Tal verdade ecoa por toda a
Escritura. O escritor de Hebreus diz que“o Senhor corrige o que ama, e açoita a qualquer
que recebe por filho” (Hb.12:6).E ainda:“se pecarmos voluntariamente, depois de termos
recebido o conhecimento da verdade, já não resta mais sacrifício pelos pecados,mas uma certa expectação
horrível de juízo, e ardor de fogo, que há de devorar os adversários”
(Hb.10:26-27).
Portanto, não adianta tentar compensar nossos erros com sacrifícios,
penitências e boas obras. A única coisa que nos resta é a correção dada por
Aquele que nos ama infinitamente. Esse “ardor de fogo” nada mais é do que o
juízo de Deus sobre o pecado. É o fogo que purifica a prata para que possa
refletir perfeitamente a imagem do ourives. Sua justiça não é apenas
retributiva, punitiva, mas, sobretudo, corretiva. Vai doer, porém, vai curar.
O que nos torna “inimigos de Deus”
são nossas más obras (Cl.1:21). Mesmo depois de havermos sido convertidos a
Ele, resta-nos resquícios do velho homem. Trata-se de um impostor que insiste
em habitar em nossa carne. É este adversário que precisa ser consumido. Por
isso, Tiago nos instrui a que nos despojemos “de toda sorte de imundícia e de todo vestígio do mal” (Tg.1:21). O fogo visa depurar-nos, eliminar
tudo o que nos afasta de Deus, inflamar nossas consciências, constrangendo-nos
e levando-nos ao arrependimento.
Para os que creem, basta olhar para
cruz e o amor ali tão magnificamente expressado, e sua consciência é logo
inflamada. Todavia, nem todos se dispõem
a crer. Para muitos, o fato de Deus ter amado o mundo a ponto de entregar Seu
Filho para morrer por nós não passa de uma fábula arquitetada pela religião.
Como, então, poderíamos atear fogo em suas consciências? Paulo nos apresenta a
saída: “Portanto, se o teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer; se tiver
sede, dá-lhe de beber; porque, fazendo isto, amontoarás brasas de fogo sobre
a sua cabeça. Não te deixes vencer do mal, mas vence o mal com o bem”
(Rm.12:20-21). Brasas são amontoadas na
consciência de quem é alvo de nosso amor sem merecê-lo. Um santo constrangimento leva-o a perceber sua
miséria e carência. E é ali, pela consciência, que nosso adversário começa a
ser devorado pelas chamas da ira amorosa de Deus. Foi este “fogo consumidor” que levou o centurião
que crucificara a Jesus a concluir:
“Verdadeiramente, este era o Filho de Deus” (Mt.27:54)! Pode-se rejeitar as
informações contidas no Evangelho, mas qualquer ser humano é vulnerável a um
gesto de amor sincero. O centurião jamais ouvira sobre o Evangelho. Não houve
ali um assentimento intelectual. Porém, ouvir Jesus pedir que o Pai perdoasse
aqueles que O crucificavam, e vê-lo tratar dignamente àquele moribundo
crucificado à Sua direita, despertou no soldado romano uma profunda admiração,
que levou-o à conclusão de que Aquele homem não era menos do que afirmavam Seus
discípulos.
Não há recurso apologético mais poderoso
do que o amor. Foi o próprio Jesus quem afirmou que o mundo nos reconheceria
como Seus discípulos se tão-somente nos amássemos uns aos outros. Se quisermos,
portanto, alcançar o coração dos que nos odeiam, não nos resta alternativa
senão amá-los profundamente, da mesma maneira como Cristo nos amou quando ainda
éramos Seus inimigos. E amar é muito mais do que nutrir um bom sentimento. Amar
é servir, promover o bem, sem esperar absolutamente nada. Só assim, nos
revelaremos ao mundo como “filhos do
Altíssimo; porque ele é benigno até para com os ingratos e maus” (Lc.6:35).