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Por um evangelho "sem lenço, nem documento"

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Por Hermes C. Fernandes

Desde criança, aprecio viajar. Gosto de respirar outros ares, conhecer culturas distintas da minha, e encontrar gente diferente. Porém, nada mais chato que fazer as malas. Sempre deixo pra última hora. Ter que decidir o que levar e o que deixar não é nada fácil. Anteriormente, carregava muita bagagem. Mas tive algumas experiências amargas de extravio de malas. Já fiquei nove dias usando roupas emprestadas por causa disso. Ademais, fui percebendo aos poucos que a maior parte do que levava, não usava. Agora viajo com o básico. Quanto menos peso, melhor. Quanto menor o tempo de espera pela bagagem na esteira do aeroporto, melhor.

Prefiro usar o mesmo terno várias vezes. Prefiro ter que lavar minhas roupas íntimas toda noite antes de dormir. Prefiro levar camisas leves, que não necessitem ser passadas.

Sei exatamente o que é ter que pagar taxa extra por ter exagerado no peso das malas. Já tive até que me desfazer de algo ali mesmo, antes do check-in no aeroporto, só pra não pagar mais. É horrível! E quando tive que abrir a minha mala e a da minha esposa para redistribuir melhor o peso... Todo mundo olhando curioso, e lá estávamos nós, tirando de uma pra colocar em outra, porque uma delas havia excedido o peso enquanto a outra estava abaixo do permitido.

Pois recentemente, resolvi fazer o mesmo com a minha teologia. Decidi abandonar todos os rótulos. Não dá mais pra carregar tanto peso sobre meus ombros. Prefiro viajar de mãos livres, como a antiga canção de Caetano, "sem lenço, nem documento, nada no bolso ou nas mãos. Eu quero seguir vivendo, amor. Eu vou. Por que não?"

Às vezes os rótulos expressam mais do que aquilo em que acreditamos. Bagagem extra! Outra vezes expressam menos. Paulo, o experiente viajante, sabia muito bem disso, e declarou que se livrara de todos os rótulos ( benjamita, hebreu, fariseu, etc.), considerando-os perda total, ainda que para muitos fossem considerados lucro na certa (Fp.3:4-7). Em vez de estribar-se neles, Paulo preferia confiar unicamente em Deus, seguindo à risca a orientação dada por Jesus a Seus discípulos: “Não leveis bolsa, nem alforje, nem sandálias…” (Lc.10:4). Nada como viajar sem bagagem… sei o que é isso!

Deixem-me dar alguns exemplos.


Identifico-me com muitos dos pressupostos calvinistas. Creio piamente na salvação pela graça, independente das obras humanas, na soberania divina, na eleição incondicional, etc. Dependendo de mim, a tulipa calvinista não perde nenhuma de suas pétalas.  Por isso, sentia-me confortável em apresentar-me como calvinista. Porém, aos poucos fui percebendo que o calvinismo carrega consigo o peso extra do conservadorismo fundamentalista. Não preciso deste peso extra. Sem dizer que muitos calvinistas encaram a eleição divina apenas como um privilégio. Continuo a crer na doutrina da eleição, porém, acredito que Deus eleja alguns para o bem de todos, e não visando seu próprio bem-estar. Prefiro também enfatizar mais a Graça Comum à depravação total, embora creia em ambas as assertivas; assim como prefiro carregar as malas de pé, apoiadas nas rodinhas, em vez de carregá-las deitadas, segurando em suas alças.

Em termos eclesiológicos, creio firmemente na igreja única, católica, apostólica, porém, não romana. Mesmo porque, os termos “católica” e “romana” são excludentes. Ou a igreja é universal (católica), ou pertencente a um local (Roma). Abraço, portanto, a catolicidade da igreja, mas deixo de lado a bagagem extra dos dogmas criados em seus concílios, bem como o seu sincretismo.

Falando de escatologia, identifico-me com o pós-milenismo, mas me recuso a carregar a bagagem extra do teonomismo. Não acredito que transformaremos o mundo simplesmente através de governos cristãos ou leis baseadas nas Escrituras. Não me considero teonomista nem antinomista. Creio na lei gravada pelo Espírito no coração dos homens. São esses que farão a revolução. Sim, creio num cristianismo revolucionário e marginal, que transformará o mundo através da mensagem subversiva do Evangelho: o amor, pregado e encarnado pelos discípulos de Cristo.

Como posso identificar-me com o conservadorismo, se o que está aí não vale a pena ser conservado? Também não acredito que devamos nos entrincheirar contra a ciência. Afinal de contas, o Cristo que reina soberanamente na igreja, também reina sobre a ciência. Nenhuma descoberta científica é acidental. O Espírito Santo foi enviado para nos conduzir à toda a verdade. E toda verdade, seja bíblica ou científica, provém da mesma fonte: DEUS! Abaixo o obscurantismo. Já não vivemos na idade média.

Creio na contemporaneidade dos dons espirituais, mas não me identifico como pentecostal nem como carismático. Há excesso de bagagens ali também. Não me sinto à vontade com as bizarrices praticadas em alguns círculos que ostentam estas bandeiras e que, infelizmente são creditadas ao Espírito Santo. Creio que os dons não têm a pretensão de criar estrelas, mas servos. Os dons nos fazem menores, não maiores. Nossa ênfase deve ser o“caminho mais excelente”, o amor (1 Co.12:31). Esta é a verdadeira evidência de que fomos batizados em um só Espírito (Rm.5:5). Muito mais do que falar em línguas angélicas, precisamos mesmo é aprender a falar a língua dos homens, e tornar o Evangelho mais acessível. Urge libertar-nos do evangeliquês usado em nosso gueto religioso.

Apesar de crer que Deus possa curar ainda hoje (e tenho visto inúmeras curas, inclusive em meu lar), não vejo a cura como uma evidência da presença de Deus em nosso meio. Acredito que Deus esteja mais interessado em curar as chagas sociais que adoecem nossa gente, do que apenas as enfermidades físicas e emocionais. Creio na cura como manifestação da misericórdia divina, e não como show sensacionalista praticado em muitos púlpitos atuais.

Creio na prosperidade. Não nesta prosperidade mágica pregada nos círculos neo-pentecostais. Mas na prosperidade que abarca toda a sociedade quando se pratica a justiça preconizada no Evangelho do Reino. Os cristãos não vivem numa bolha de proteção. Se a sociedade prospera, também prosperamos (Jer.29:7). Portanto, devemos trabalhar pelo bem-comum, sem corporativismo eclesiástico.

Os únicos itens que não podem faltar em nossa mala são a fé, a esperança e o amor, e o maior deles é o amor (1 Co.13:13).

Ao passar pela alfândega celestial, teremos que deixar de lado nossas ideologias, tudo em que nos estribamos, e só poderemos nos valer de Sua surpreendente graça.

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