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Prazer, poder, posse, prestígio e... pressa!

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Por Hermes C. Fernandes

Jesus foi o único ser autenticamente humano. Para que fosse devidamente aprovado, teve que passar por um severo teste de qualidade em que enfrentou tudo o que desumaniza o ser.

O escritor sagrado afirma que Ele, "como nós, em tudo foi tentado" (Hb.4:15). Porém, resistiu firmemente, tornando-se "homem aprovado por Deus" (At.2:22). Fora Ele, todos foram reprovados e invariavelmente nos mesmos quesitos.  Somos, por assim dizer, esboços humanos. Cristo é o único devidamente acabado. Como ser humano por excelência, Ele é tudo o que fomos vocacionados a ser. E agora mesmo, o Espírito Santo, o sumo arte-finalista, está reforçando em nós os traços da imagem e semelhança de Deus, enquanto apaga as rasuras feitas pelo pecado. Estamos destinados a ser como Ele é, verdadeira e plenamente humano. 


O episódio conhecido como "A tentação no deserto" nos permite uma leitura arquetípica. Nele, Cristo é provado nas mesmas esferas em que todos os homens o são, a saber, nas áreas do prazer, poder, posse, prestígio e pressa.

Tão logo deixou a cena batismal, Jesus foi levado pelo Espírito ao deserto para ser tentado. Repare: Ele não foi levado para se consagrar, para jejuar, ou coisa parecida, mas para ser tentado. O jejum de quarenta dias não visava torná-lo mais forte para resistir, e sim mais fraco para que a tentação fosse legítima. Se não tivesse fome, não se sentiria realmente tentado com a sugestão de transformar pedras em pães. 


Enquanto o primeiro homem foi tentado num cenário paradisíaco, tendo acesso a todas as árvores e frutos (exceto o que lhe fora vetado por Deus), o segundo Adão, Jesus, foi tentado num cenário inóspito, privado de qualquer conforto. O primeiro caiu, o segundo, manteve-se de pé. Portanto, não depende do cenário, se num deserto ou num jardim. Não depende se estamos de barriga cheia ou vazia. 


Quem o conduz ao deserto é ninguém menos que o próprio Espírito de Deus, aquele que manifestou-se sobre Ele em forma corpórea de uma pomba.

Na primeira investida do diabo, fora-lhe dito: "Se tu és o Filho de Deus, manda que estas pedras se tornem em pães." O que haveria de imoral ou mesmo antiético em usar Seu poder para transformar pedras em pães? Absolutamente nada. Seria precipitado acreditar que toda tentação vai de encontro a um princípio moral ou ético. O que concede à sugestão o status de tentação é a sua procedência. Por isso, Jesus responde: "Nem só de pão viverá o homem, mas de toda a palavra que procede da boca de Deus." O problema não eram as pedras ou os pães mas a boca de onde procedia tal palavra. Se não vem da boca de Deus, corre sérios riscos de vir da boca do diabo. E se este for o caso, só nos cabe rechaçar, por mais razoável que pareça ser. 

A primeira tentação opera na área sensorial, onde habita nossas necessidades físicas e emocionais. Cada uma delas quando saciada promove prazer. Sentimos prazer no sono, na ingestão de alimento, no sexo. O prazer é um bônus concedido pelo Criador, porém, jamais deveria ser visto como o supremo objetivo da vida. Comemos porque precisamos sobreviver. Dormimos porque temos que recarregar as baterias e assim, estar prontos para trabalhar. Fazemos sexo para expressar nosso carinho e afeição pela pessoa amada (não apenas para a reprodução). O hedonista é aquele que busca o prazer pelo prazer, independente dos efeitos colaterais ou do sofrimento que poderá causar a outros. 

Na busca frenética por satisfação, muitos se dispõem a transformar pedras em pães. Buscam prazer em canais que não foram criados para isso. Um exemplo é a pornografia. Tentar extrair dela um prazer só encontrado na relação a dois é doentio na medida em que coisifica o ser humano. Outros buscam em relações extraconjugais o que deveria ser encontrado em seu próprio casamento. Sexo requer interação, troca de fluídos (tanto corporais, quanto emocionais), cumplicidade, carinho e... compromisso. O que não nos humaniza, nos coisifica. Jesus repudiou a sugestão de Satanás em usar Seu poder para transformar um mineral em fonte de nutrientes como carboidratos, proteínas e vitaminas. Comer faz bem, mas glutonaria não. Dormir é bom, mas preguiça não. Sexo é bênção, mas promiscuidade é maldição. Na área do prazer o que distingue o remédio do veneno é a dosagem. Se fizermos do prazer o objetivo central de nossas vidas ele se tornará vício e nos consumirá como uma droga. Toda palavra que procede da boca do diabo nos instiga à compulsão. A Palavra procedente da boca de Deus nos estimula o equilíbrio. 

Aprovado nesta área, o diabo o levou a outro cenário para ter Seu poder colocado à prova.
"Então o diabo o transportou à cidade santa, e colocou-o sobre o pináculo do templo,e disse-lhe: Se tu és o Filho de Deus, lança-te de aqui abaixo; porque está escrito: Que aos seus anjos dará ordens a teu respeito, e tomar-te-ão nas mãos, para que nunca tropeces em alguma pedra."
Se Jesus fosse dado à performance, certamente teria cedido ao apelo do diabo. Mas Ele jamais Se preocupou em provar nada a quem quer que fosse. Jamais deixou-se seduzir pelo poder. O que tornava esta tentação mais desafiadora não era a altura do pináculo mas a promessa de que haveria anjos trabalhando em Seu favor para impedir que Ele se esborrachasse no chão. Esta é a tentação do poder. Sentimo-nos confortáveis de saber que tem gente trabalhando para nós, sob nossas ordens diretas. Por que o cenário escolhido foi o pináculo do templo? Porque de lá Ele teria plateia. Os próprios sacerdotes testemunhariam assombrados Sua demonstração de poder. Sem plateia não há aplauso. Aquilo não era tentação para o deserto, onde ninguém assistiria. Estava em jogo tanto o Seu poder quanto o Seu prestígio. Repare que as duas primeiras tentações começam com a frase "Se tu és o filho de Deus...". Em outras palavras: - Mostra pra todo mundo que você é o cara! 

Tanto o poder como a busca desesperada por prestígio e reconhecimento desumanizam o ser. Almejamos o poder para nos sentir importantes e não para usá-lo em favor do bem comum. A notoriedade deixa de ser consequência natural de quando se busca a excelência naquilo que se faz para tornar-se no alvo dos alvos. Poder e prestígio se unem e conspiram contra nossa humanidade. 

Observe que o diabo usou descaradamente um trecho das Escrituras para compor sua indecorosa proposta.  Ninguém conhece tão bem a Bíblia quanto ele. Sua estratégia é justificada pelo fato de Jesus ter afirmado que só aceitaria palavras cujo procedimento fosse a boca de Deus. Porém, Jesus não deixou barato:  "Disse-lhe Jesus: Também está escrito: Não tentarás o Senhor teu Deus."

Um conhecimento medíocre das Escrituras pode causar danos tão grandes quanto a ignorância. Antes de abonar qualquer ensino ou doutrina baseados nas Escrituras, confiramos o que "também está escrito". Texto sem contexto é pretexto... Se fôssemos mais atentos, muitas heresias não se criavam...

Nesta resposta, Jesus deixa claro que acatar a sugestão do maligno era o mesmo que tentar a Deus. Não temos o direito de pinçar uma promessa e cobrar de Deus o seu cumprimento. Assim como nós, Deus não tem nada que provar a ninguém. 

Em sua última cartada, o diabo o transportou "a um monte muito alto; e mostrou-lhe todos os reinos do mundo, e a glória deles. E disse-lhe: Tudo isto te darei se, prostrado, me adorares."

Alguns acham que Satanás estava blefando. Penso que não. Até aquele momento ele ainda era o príncipe deste mundo. Prometer o que não pode entregar não é uma tentação legítima. Nesta tentação encontramos dois elementos desumanizadores: a posse e a pressa.

Para instigar-lhe a cobiça, o diabo levou-o a um lugar de onde tivesse uma vista panorâmica (360o) de todos os reinos do mundo. Bastava que Jesus caísse prostrado aos seus pés e pronto... o mundo inteiro lhe seria entregue de mão beijada. Tentador, não? 

Quantos vendem a alma ao diabo para ter o que desejam! O problema da posse é que ela geralmente é uma estrada de mão-dupla. Tudo o que possuímos também nos possui. Somos consumidos por aquilo que elegemos como nosso sonho de consumo. Sucumbidos ante ao apelo publicitário, nunca estamos satisfeitos com o que temos. Sempre queremos mais, mais e mais; ainda que para alcançarmos as coisas, tenhamos que usar as pessoas. As coisas, em vez de as pessoas, tornaram-se objetos do nosso amor e devoção. Ceder ao apelo consumista é prostrar-se diante de Satanás. É etiquetar a alma e vende-la por qualquer bagatela, ignorando o altíssimo preço pago por Cristo pela sua redenção. 

Prazer, poder, prestígio, posse e... pressa!

Jesus tinha um cronograma que incluía sofrer perseguições, acusações falsas, traições, e por fim, uma morte vexatória na cruz. Tudo isso para que o mundo com todos os seus reinos fosse resgatado e devolvido a quem de direito (Ap.11:15). Satanás propõe-lhe um atalho. Ora, quem toma atalho é porque tem pressa. Em vez de cruz, genuflexão. Em vez de sacrifício, submissão cega ao príncipe deste mundo. 

Na era da pressa cultua-se a velocidade. Tudo é pra ontem. Ninguém tem paciência de esperar o tempo de maturação. Antes, o apressado comia cru, hoje, o apressado come macarrão instantâneo ou comida congelada levada ao micro-ondas. Em vez de paciência, cultivamos a ansiedade como se fosse virtude. 

Uma vez proferida a resposta que deu um 'chega-pra-lá' no diabo, "eis que chegaram os anjos e o serviam" (Mt.4:11). De onde concluímos que é melhor esperar e ser servido por anjos do que meter os pés pelas mãos e passar o resto da vida tendo do que se arrepender. 

Aprendemos com este episódio que há cinco forças que conspiram contra a nossa humanidade e buscam nos coisificar. Cada uma delas nos revela um inimigo para o qual não podemos dar trégua: 

* A carne (instigando-nos a priorizar o prazer a qualquer custo)
* O diabo (oferecendo-nos poder ou buscando fazer com que o usemos em benefício próprio)
* O mundo (atiçando nossa cobiça, oferecendo-nos posse)
* O ego (em sua ânsia por prestígio, glória, reconhecimento)
* O tempo (incitando-nos à ansiedade)

Como prevalecer sobre eles? Há dois caminhos diante de nós. O primeiro deles é o do legalismo que, com todas as suas proibições e ordenanças só faz colocar o vírus do pecado em quarentena. O segundo é a graça manifestada na cruz, a única capaz de neutralizá-lo e eliminá-lo. Uma vez crucificados com Cristo, deixamos de viver para nós mesmos e passamos a viver exclusivamente em função do propósito para o qual fomos criados e resgatados. Portanto, já não vivemos em função do prazer, do poder, do prestígio, da posse ou da pressa, mas em função do propósito. É um "p" que vale por todos os outros "p's".


Somente depois de experimentarmos o poder da cruz, estaremos habilitados a combater o desejo de poder com serviço, a ânsia por posse com partilha, a paixão por prazer com renúncia, a busca por prestígio com humildade e a pressa com perseverança.

Enquanto uns buscam bens para desfrutar, outros, poder para se beneficiar, outros, experiências para contar e outros, aplausos e reconhecimento para se vangloriar, receberemos do Senhor bens para repartir, poder para servir, experiências para ensinar e ainda por cima, transferiremos toda glória que recebermos para Aquele a quem reconhecemos como nossa única fonte.

Tudo o que nos é oferecido tem prazo de validade. O poder perece quando nossa habilidade é superada, e somos substituídos por alguém mais competente. A posse termina quando o bem adquirido se desgasta e vira lixo. O prazer é momentâneo, termina quando a necessidade é suprida. O prestígio de hoje é o anonimato de amanhã. Quem hoje nos aplaude, amanhã no vaia ou nos esquece. A única coisa que dura para sempre é o amor. Ele é que confere propósito à nossa existência. 

Tudo é vaidade! Tudo é saudade. As pessoas entram em nossa vida como quem já acena se despedindo. As coisas que pareciam tão duráveis desaparecem como miragem. O carro zero de hoje é a lata velha de amanhã. A roupa de grife vira pano de chão. O poder um dia se aposenta. A beleza atraente se esvai e sobra a exaustão e o tédio. Os aplausos se silenciam... Só sobra o amor.

E é este amor que nos constrange, "julgando nós assim: que, se um morreu por todos, logo todos morreram. E ele morreu por todos, para que os que vivem não vivam mais para si, mas para aquele que por eles morreu e ressuscitou" (2 Co. 5:14-15).

O antídoto contra o veneno do "viver-para-si" (que é o coração de toda tentação e que desumaniza o ser) pode ser encontrado no finalzinho da doxologia de Paulo:
"Porque dele e por ele, e para ele, são todas as coisas; glória, pois, a ele eternamente. Amém." Romanos 11:36
Ora, se todas as coisas são d'Ele, logo, não há sentido em fazer da busca da posse o objetivo da existência. Tudo o que há já tem um dono: Jesus. Se todas as coisas subsistem "por Ele", logo todo o poder está concentrado em Suas mãos. Seria bobagem usurpá-lo. Se tudo existe "para Ele", logo é a Sua satisfação que deve ser alcançada, não a nossa. Porém, quando priorizamos o prazer divino, Ele nos faz participantes do mesmo. O que capacitou Jesus a vencer todas as tentações foi a palavra que ouvira da boca do Pai assim que foi batizado: "Este é o meu Filho amado em quem tenho prazer". Nossa busca frenética por satisfação pessoal é substituída pela busca daquilo que agrade a Deus. Diante de tudo isso, concluímos que a glória deva ser exclusiva do Senhor. Diferente da glória deste mundo que murcha com o tempo, a glória celestial é eterna. Daí não haver mais necessidade de sermos consumidos pela pressa. Vivemos para a eternidade. Como dizia Renato Russo, "temos todo o tempo do mundo", ou melhor, "temos toda a eternidade". Pressa pra quê?


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