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O que estaria por trás da redução de maioridade penal

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Por Hermes C. Fernandes

Hoje o Brasil amanheceu mais justo e seguro. Aqueles que se dignam a nos representar na Câmara de Deputados finalmente aprovaram em primeiro turno a PEC 171 que reduz a maioridade penal de 18 para 16 anos. Que lindo ver nossos representantes se reunindo por duas madrugadas consecutivas para votar pauta tão importante. É de se admirar. Provavelmente foram movidos pelo patriotismo, marca característica de nossa classe política. 

Devemos reconhecer o esforço hercúleo de Eduardo Cunha para atender aos anseios de 87% da população que clamam por vingança, ops, por justiça. Aliás, esforço precedido pelo louvável empenho da mídia nos últimos meses em noticiar insistentemente crimes envolvendo menores no afã de manipular a opinião pública a favor da redução. Não é que deu certo? Por isso, tanto gente lamentou a reprovação da PEC no dia anterior e celebrou sua aprovação 24 horas depois. 

Cunha tão teria conseguido tal proeza não fosse o apoio da mega bancada BBB (Bíblia, Boi e Bala), formada por representantes das bancadas evangélica, ruralista e armamentista. Mas quem, de fato, puxou o bonde foi a da Bala. Depois de mais de duas décadas de debates na Câmara, e de ter tido sua tramitação travada por deputados ligados aos direitos humanos, finalmente, os nobres deputados conseguiram derrubar uma cláusula pétrea da Constituição, reduzindo a maioridade penal para 16 anos. 

Deixando de lado a ironia, o que há para comemorar? Será que a redução vai diminuir a criminalidade no país? Ora, está comprovado que os homicídios cometidos por adolescentes representam menos, eu disse menos de 1% do total, ao passo que mais de 36% das vítimas de homicídios no Brasil são adolescentes. Portanto, são mais vítimas do que algozes. Em vez de protegê-los, oferecendo medidas sócio-educativas, preferimos varrê-los para debaixo do tapete, num vergonhoso processo de higienização social. 

Quem já fez trabalhos humanitários ou evangelísticos dentro dos presídios como já fiz, jamais comemoraria uma aprovação esdrúxula como esta. Só Deus sabe o que aguarda estes meninos em sua maioria negros e pobres das periferias. A garotada que for detida será matriculada em verdadeiras universidades do crime que funcionam atrás das grades. Quem entra assassino sai assassino em série. Não há reabilitação, com raríssimas exceções. O número de reincidência é assustadoramente enorme. Quando chega “carne nova” no pedaço, tem que se submeter aos caprichos sexuais dos veteranos. 

Ora, se não reabilita, para quê enviá-los para lá? Estamos dando um tiro no pé. Adiando problemas. Tudo para saciar nossa sede de vingança. Enquanto isso, aqui fora, o tráfico passará a recrutar meninos de menos de dezesseis. Quem sabe, em poucos anos, possamos reduzir para 14, depois para 12, 10, 8. Só Deus sabe aonde isso pode parar. 

O mais triste é saber que por trás disso tudo está quem diz seguir e servir Àquele que disse: "Deixai vir a mim as crianças, porque delas é o reino dos céus." Estes são a vergonha do evangelho! Mas, cá entre nós: o que se poderia esperar da união destas bancadas? A da Bíblia com o seu moralismo hipócrita, a do Boi representando o setor que mais emprega trabalho escravo no país, e da Bala, com sua obstinação em armar a população. A propósito, como Jesus se pronunciaria diante disso? 

No Brasil, cria-se o problema para que se venda a solução. Que interesse haveria por trás da PEC 171 capaz de fazer com que deputados trabalhem por duas madrugadas consecutivas, e como se não bastasse, faz com que alguns mudem seu voto em apenas 24 horas? O que esta redução de maioridade penal vai render? Ou alguém é ingênuo para achar que é por justiça e patriotismo? Para onde vamos alocar os menores que forem detidos? Não há espaço em nosso sistema prisional. Provavelmente teremos que construir mais unidades. Com que verba? Já foram cortados 7 bilhões só da educação. De onde o país vai tirar os recursos para a construção de novos presídios? A resposta revela o que há por trás do interesse em reduzir a maioridade pena. Uma vez criado o problema, a solução será buscar no setor privado. Querem privatizar o sistema carcerário brasileiro. Ninguém dá ponto sem nó. 

Mesmo que eu fosse favorável à redução, não veria nisso qualquer razão para comemorar. Acima de tudo, sou um seguidor de quem ensinou a oferecer a outra face, não o “olho por olho e dente por dente”. 

De qualquer maneira, a PEC 171 ainda tem um caminho a percorrer até que seja plenamente aprovada ou rejeitada. Caberá ao Senado lançar uma pá de cal no assunto. E espero que nossos senadores sejam mais sensíveis do que os deputados regidos pela batuta de Eduardo Cunha.


P.S.: Meu amigo Balnires Júnior postou um comentário em minha timeline onde se vê claramente o link entre a redução da maioridade pena e o fantasma da escravidão que ainda nos assombra: "Abolida a escravidão em 1888, e proclamada a República no ano seguinte, uma das primeiras providências desta foi promulgar novo Código Penal em 1890, o qual reduziu a responsabilidade penal (não confundir com maioridade penal) de catorze para nove anos. Nina Rodrigues, ícone da Medicina Legal, verbalizou a motivação da medida em As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil, de 1894: “No Brasil, por causa das suas raças selvagens e bárbaras, o limite de quatorze anos ainda era pequeno! [...] o menino negro é precoce, afirma ainda Letorneau; muitas vezes excede ao menino branco da mesma idade; mas cedo seus progressos param; o fruto precoce aborta. [...] quanto mais baixa for a idade em que a ação da Justiça, ou melhor do Estado se puder exercer sobre os menores, maiores probabilidades de êxito terá ela.” Parte do texto "Maioridade e Atavismo Social" do Cel. Jorge Da Silva.

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