Por Hermes C. Fernandes
Quando eu poderia supor a repercussão que haveria por termos incluído músicas seculares em nossos cultos? Seria estratégia? Marketing? Ou haveria uma razão plausível e bem calcada nas Escrituras? Se marcou a terceira opção, você acertou na mosca. Temos razões bem embasadas para isso. Alguns até admitem que cristãos possam ouvir música secular, mas jamais admitiriam a inserção de tais músicas no ambiente de culto. Por que será? Antes de apresentar nossas razões, permita-me responder a algumas críticas.
Primeiro, o lugar que usamos para pregar e cantar não é altar, mas apenas plataforma e púlpito. Portanto, não se trata de um lugar mais santo que os demais. Vivemos sob a égide da Nova Aliança em que não há geografias santas, mas consciências santificadas. O único altar reconhecido pela graça é o que foi erigido no coração dos que creem e adoram a Deus em Espírito e em verdade. Ponto. Quanto ao culto em si, ele não está restrito às horas que gastamos reunidos no lugar que comumente chamados de “igreja”. Nosso culto é a vida que dedicamos a Deus. Ele começa no dia em que nos rendemos ao Seu amor, e não tem hora para acabar. Ele vai varar a eternidade! Dito isso, vamos às razões pelas quais introduzimos canções seculares em nossas reuniões.
O apóstolo Paulo diz que há uma “ardente expectativa” na criação como um todo, o que inclui cristãos e não cristãos, humanos e animais, seres animados e inanimados. Todos aguardam com enorme expectativa a manifestação dos filhos de Deus, o momento em que os filhos de Deus deixarão seus guetos para se revelar ao mundo, para além das fronteiras eclesiásticas, bem como o momento em que nossos corpos serão glorificados. Logo em seguida, Paulo diz que “a criação ficou sujeita à vaidade, não por sua vontade, mas por causa do que a sujeitou, na esperança de que também a mesma criação será libertada da escravidão da corrupção, para a liberdade da glória dos filhos de Deus” (Romanos 8:19-21). O termo “vaidade” usado nesse texto tem a conotação de “processo”, algo que, todavia, não está concluído, mas em constante mutação. Há uma instabilidade na criação. As coisas ainda não atingiram sua configuração definitiva. Paulo, então, lança mão da gravidez como uma metáfora, e diz que “toda a criação geme como se estivesse com dores de parto até agora” (v.22). O cosmos inteiro está grávido de um novo cosmos, ou na linguagem bíblica, de um novo céu e uma nova terra, que nada mais são que uma nova configuração da criação atual. Todo o cosmos será renovado. Por isso, a criação geme, pois sente as contrações típicas da gestação, que se manifestam através dos cataclismos naturais como furacões, terremotos, tsunamis, etc.
Esses gemidos também podem ser claramente ouvidos através da cultura produzida pelo gênio humano. Há um clamor por justiça, por paz, por amor, que se expressa nas músicas, nas artes em geral, e até nas ideologias e filosofias. Quem estaria por trás destes gemidos? Quem os despertaria? Deixemos que Paulo nos responda na continuação de seu raciocínio: “
Não só ela (a criação como um todo), mas nós mesmos, que temos as primícias do Espírito, também gememos em nós mesmos.” Romanos 8:22-23a
Atrevo-me a dizer que tanto os gemidos que são produzidos em nosso interior, quanto os gemidos do restante da criação são frutos do mesmo Espírito. Por isso, posso identificar a inspiração do Espírito Santo em muito daquilo que chamamos de “secular”. Mas como o Espírito inspiraria gente de fora de nosso círculo? Ele não é uma exclusividade do povo de Deus? Não confunda alhos com bugalhos. Somos “povo de propriedade exclusiva” de Deus, mas Ele não é propriedade exclusiva de ninguém. Ele é o Deus de todos os povos! Como disse João, Ele é “a verdadeira luz que ilumina todos os homens” (João 1:9). Como? Então, não são somente os cristãos regenerados que são iluminados por esta luz? Foi exatamente isso que eu disse. Jesus disse que Deus“faz que o seu sol se levante sobre maus e bons” (Mt.5:45). Toda consciência pode ser igualmente iluminada pelo Sol da Justiça, independentemente do credo que professe. E não só isso: Ele faz com que Sua “chuva desça sobre justos e injustos.” A que chuva Jesus Se refere aqui? Àquela prometida em Joel 2:23, isto é, a chuva do Espírito. Nos versos 28 e 29, o Senhor diz: “Derramarei do meu Espírito sobre toda a carne.” Ele não diz que derramaria Seu Espírito exclusivamente sobre os cristãos, mas sobre toda a carne. O que significaria “toda a carne”? Exatamente isso: Toda a carne. Alguns objetarão: “Não pode ter sido isso que Ele quis dizer...” Então, por que disse? Ele só diz o que almeja comunicar. Nós é que reduzimos o escopo da ação do Seu Espírito. Achamo-nos detentores do monopólio do Espírito. E não me diga que esta profecia ainda vai se cumprir no futuro. Se fosse assim, Pedro teria cometido um erro grotesco de interpretação ao afirmar no dia de Pentecostes que aquele era o comprimento dessa profecia. A partir de Pentecostes, o Espírito passou a atuar indistintamente em toda a carne, despertando em cada ser humano um desejo por justiça.
Paulo reconheceu isso ao declarar que “quando os pagãos, que não têm lei, fazem naturalmente as coisas que são da lei”, eles estariam revelando “a obra da lei escrita em seus corações, testificando juntamente a sua consciência, e os seus pensamentos, quer acusando-os, quer defendendo-os” (Romanos 2:14-15). Quem, afinal, teria escrito a lei em seus corações? Quem lhes teria dado a consciência de certo ou errado? Não teria sido justamente o Espírito Santo ao ser derramado sobre toda a carne? Ou não é isso que lemos em passagens como Hebreus 10:16, onde lemos que o próprio Deus poria Suas leis em seus corações e as escreveria em seus entendimentos? Jesus disse que quando o Espírito fosse derramado, Ele convenceria o mundo do pecado, da justiça e do juízo (João 16:7-8). Em outras palavras, Ele daria aos homens a noção de certo e errado, do que é justo e belo, e do que é desigual e assimétrico, e da distinção entre eles (juízo: do grego krisis: distinção entre o certo e o errado). Todavia, deve-se salientar que há uma diferença significativa entre os que recebem do Espírito como uma chuva e os que d’Ele bebem. O derramar do Espírito sobre toda a carne instiga nos homens uma sede por justiça e beleza. Mas, somente os que por Ele são regenerados são saciados. Não basta banhar-se em Suas águas. Há que se saciar nelas.
De acordo com a profecia de Joel, este derramar do Espírito abrangeria todas as gerações, etnias, gêneros e classes. É um derramar multigeracional, porque uma única geração não daria conta de promover as transformações necessárias nas estruturas injustas do mundo. Quando os velhos sonham, os jovens veem a realização desses sonhos. Uma geração projeta, a outra realiza. Nenhuma geração sozinha daria conta de restaurar o que levou várias gerações para ser destruído. Isaías profetiza que a descida do Espírito Santo resultaria na edificação dos “lugares antigamente assolados”, e na restauração dos “anteriormente destruídos” e na renovação de “cidades assoladas, destruídas de geração em geração” (Is.61:4). Portanto, pode-se dizer que a chuva do Espírito começou em Pentecoste e nunca mais estiou. Geração após geração, da chuva temporã até a serôdia (Joel 2:23). Desde então, nunca mais o mundo foi como antes. Instituições injustas como a escravidão acabaram ruindo. Mulheres e crianças que antes eram desprezadas, passaram a ser especialmente contempladas. Porém, ainda há um longo percurso pela frente até que a justiça do reino se estabeleça plenamente entre as nações.
Este derramar também é multiétnico, abrangendo também todos os gêneros e classes. Por isso se diz que “até sobre os servos e as servas” se derramaria o Espírito. Naquela época, os povos escravizavam outros povos, geralmente pertencentes a outras etnias. Dizer que o Espírito seria derramado sobre “servos e servas” era dizer que alcançaria mesmo as etnias conquistadas e escravizadas. Falar em servos também é falar da base da pirâmide social. Nenhuma classe seria preterida, ficando de fora do escopo deste derramar do Espírito. Mas provavelmente, o mais surpreendente nesta profecia é que ela não respeita as distinções sexistas. Tanto “servos”, quanto “servas”, isto é, tanto homens, quanto mulheres seriam alvos desta chuva.
O que tudo isso tem a ver com música secular na igreja? Absolutamente, tudo. O mesmo Espírito que nos inspira a compor e a entoar louvores a Deus, também inspira aqueles sobre os quais Ele foi derramado, levando-os a compor e a entoar canções que expressem seus anseios pelo que é bom, belo e justo. Juntos, nós e eles, formamos um coral de “gemidos”, de sons e melodias que partem do âmago de nossas almas. Um coral regido pelo mesmo Espírito. Basta parar para ouvir algumas canções seculares desprovido de preconceito para se dar conta desta verdade. Isso não significa que todas as canções seculares sejam igualmente inspiradas por sentimentos nobres. Há muito lixo no mercado, inclusive no gospel. Daí a necessidade de sermos seletivos. Em vez de classificar a música como santa ou profana, que tal sermos mais criteriosos, limitando-nos a classificá-la como boa ou ruim? Não é um selo gospel que santifica uma peça artística, mas a intenção do seu autor e os sentimentos que produz em nós. Uma canção que nos instigue o que há de pior em nossa natureza, ainda que fale de Deus, não pode ser coisa boa, não é mesmo? Uma canção que instigue um sentimento de vingança, inveja, preconceito, egoísmo, não pode ter a mesma fonte que uma canção que nos estimule ao amor, ao cuidado recíproco, ao perdão, à comunhão e amizade. Portanto, não é o canal que deve ser avaliado e sim a fonte. Pedro, por exemplo, foi usado pelo Espírito para afirmar a divindade de Jesus. Minutos depois, emprestou seus lábios ao maligno para tentar dissuadir Jesus de entregar Sua vida por amor. Sem titubear, Jesus o repreendeu: para trás de mim, Satanás! Repare: de um mesmo canal jorrou água doce e amarga. Tiago diz que o ideal seria que não fosse assim (Tg.3:11). Mas, infelizmente, é assim que tem sido. Os seres humanos somos ambíguos, capazes de coisas louváveis e repulsivas. Se tivermos que cobrar coerência, façamos àqueles que conhecem o evangelho, pois são indesculpáveis. Quanto aos que não o conhecem, já é de se admirar que se prestem a serem usados por esta graça incomum para expressar os anseios da criação.
Abaixo uma canção do Jota Quest que exemplifique o que expusemos aqui.